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PODER JUDICIÁRIO - JUSTIÇA FEDERAL
Seção Judiciária do Estado de Sergipe

 

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Processo n. 2000.8500.001033-2 - Classe 05002 - 1ª Vara

Ação: Ação de depósito

Autor: INSS

Ré: Colégio Santa Sofia Ltda.

Juiz Federal: Ricardo César Mandarino Barretto.

Constitucional e Processual Civil. Ação de depósito da Lei 8.866/94. Inconstitucionalidade . Carência da ação.

É inconstitucional a Lei 8.866/94, cujo escopo único é a submissão do devedor tributário à perda da liberdade, ou seja, coagindo-o ao pagamento da dívida tributária, agredindo assim os princípios constitucionais da moralidade, isonomia e livre iniciativa, além de outras inconstitucionalidades identificadas liminarmente pelo STF, na ADIN 1.055/DF. Indeferimento da inicial. Extinção do processo sem julgamento de mérito.

 

SENTENÇA:

Vistos, etc...

O Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, qualificado na inicial de fls. 02, propõe, contra Colégio Santa Sofia Ltda., a presente ação de depósito, objetivando o julgamento da procedência da ação, para o fim de entrega do bem em 24 horas e, caso não entregue, seja decretada a prisão dos mencionados responsáveis legais, nos termos do art. 7º, da Lei n.º 8.866/94.

Alega que a ré descontou, dos salários pagos aos seus empregados, a contribuição previdenciária por eles devida ao INSS, não os repassando ao cofres da Previdência Pública, havendo procedido a inscrição do débito em dívida ativa, conforme certidão que junta.

É o relatório.

Com efeito, a ação de depósito regulada nos art. 901 a 906, do CPC, entre os procedimentos especiais, visa exigir a restituição da coisa depositada. Se o réu é condenado a fazê-lo e assim não procede, sujeita-se à prisão.

Cuida-se, evidentemente, de medida com força coercitiva extrema, que visa, na verdade, a devolução do bem depositado, seja em garantia de uma dívida, no caso da alienação fiduciária, seja da própria dívida, como é a hipótese da Lei 8.866/94, que equiparou, a depositário, "a pessoa a que a legislação tributária ou previdenciária imponha a obrigação do reter ou receber de terceiro, e recolher aos cofres públicos, impostos, taxas e contribuições, inclusive à "Seguridade Social"(art. 1º).

Para o Professor Humberto Teodoro Júnior, "A manutenção, outrossim, da ação de depósito, como instrumento de promoção da prisão civil do depositário infiel, que tem merecido não poucas censuras do pensamento jurídico moderno, é vista como injustificável anacronismo e autêntica reminiscência do caráter infamante da velha " actio depositi directa dos romanos."

Vale-se de Pontes de Miranda, para quem "a ação de depósito contém elemento de condenação, a forte dose, mas é ação executiva", daí afirmou que:

 

"Para atender a pretensão real do depositante, isto é, pretensão à coisa depositada, a lei processual joga com técnicas variadas, tanto de condenação, como de coação e execução, mas o cunho marcante do sistema escolhido é, sem dúvida, voltado para um fim executivo típico, qual seja, o de dar realidade a uma execução forçada.

E o procedimento tem que ser caracterizado como executivo porque todo o mecanismo com que opera a ação de depósito para chegar ao ato material da restituição da coisa retida pelo depositário dispensa "um outro processo posterior para tornar efetivo no mundo dos fatos (isto é, executar) o comando contido na sentença".(pág. 1.503).

No caso da ação de depósito, em face da Lei 8.866/94, esse caráter emerge. Considero a referida lei de inspiração despudorada, imoral, violenta, que se utiliza de um mecanismo de coação praticamente irresistível, para forçar o pagamento, eis que a faculdade de executar "o que foi reconhecido na sentença", na dicção do art. 906, do CPC, revela-se despicienda, um vez que a autora já dispõe do título executivo extrajudicial, que é a Certidão de Inscrição na Dívida Ativa.

Tenho, para mim, como agressão ao princípio da moralidade do art. 37, da Constituição, a edição desta lei mal intencionada, violenta e espúria, no conteúdo, que visa legalizar uma coação irresistível, para obter a cobrança de tributos, em que pese os inúmeros privilégios de que já goza a Fazenda Pública. Só falta legalizar o linchamento moral dos devedores da Fazenda Pública, pouco importando a situação de cada um, como conjuntura econômica, mercado, etc, que pode afetar a possibilidade ou não de honrar seus compromissos. No século XIX, há registros históricos desse linchamento, caracterizado pela atuação de bandinhas musicais que, em pequenas cidades do interior, portavam-se diante da casa do devedor, para chamar a atenção de que ali residia um mau pagador.

Na minha atuação como Juiz, todos os que militam no foro sabem que, em procedimentos criminais decorrentes da falta de recolhimento de contribuições previdenciárias, tenho condenado réus que não demonstram impossibilidade econômica de haverem procedido o recolhimento das contribuições, absolvendo os demais.

Entretanto, na esfera civil, a carência de ação é manifesta, eis que baseada em uma lei espúria, imoral, que não pode subsistir diante de preceitos constitucionais sagrados, como o STF já sinalizou, liminarmente, na ADIN 1.055-7.

Essa lei absurda inibe, igualmente, o princípio da livre iniciativa do art. 170, da Constituição, eis que inadmite insucessos empresariais, afastando qualquer pessoa inexperiente da tentativa de atividade comercial que, se mal sucedida, com atraso no pagamento de tributos, sujeitar-lhe-á à cadeia, à privação da liberdade, como escolha, pelo Estado, da forma mais cômoda de cobrança dos seus créditos tributários, mormente em um sistema tributário injusto como o nosso, onde os conglomerados financeiros sequer pagam imposto de renda.

Nessa ótica de consideração, a multicitada Lei n.º 8.866/94, afronta o princípio da isonomia.

Sobre a moralidade do direito, a idéia do Direito e Justiça, o Professor Tércio Sampaio Ferraz Jr., pontificou:

 

"quando a decodificação é rigorosa, conforme um código forte, as relações sociais consideradas justas admitem desigualdades proporcionais entre os membros da sociedade garantidas pelas posições de supremacia e inferioridade definidas por princípios que implicam a solidariedade mecânica e orgânica e a necessidade de associar permanentemente força ativas. Assim, o sistema de justiça material, tende, nesse caso, a privilegiar a atividade utilitária e o trabalho comum, donde a razoabilidade da conduta ser o princípio da disciplina social; o que não é razoável, é injusto."

Acrescento, a lei referida agride o que Recasens Siches denominou como sendo "a lógica do razoável".

Ainda o Prof. Tércio Ferraz: "Com base na igualdade proporcional abstrata e genérica, a idéia de Justiça aponta para uma concepção menos espaçosa, mais delimitada de direito e os valores morais que ela integra e congrega dizem respeito à estabilidade, à paz, à segurança, ao proveito bem repartido e conseguido passo a passo".

Indago, onde haveria espaço para a paz, estabilidade e segurança, que é o fim de todo ordenamento jurídico, com a idéia de regras do infeliz diploma legal analisado? Só na cabeça dos burocratas de plantão, em que pese cibernéticos, inspirados no direito intermédio. Talvez pretendam ressuscitar a chibata.

O Professor Tércio Ferraz conclui seu raciocínio afirmando que "O direito, em suma, privado de moralidade, perde sentido, embora não perca necessariamente império, validade, eficácia. Como, no entanto, é possível, às vezes, ao homem e à sociedade, cujo sentido de justiça se perdeu, ainda assim sobreviver com o seu direito, este é um enigma, o enigma da vida humana, que nos desafia permanentemente e que leva muitos a um angustiante ceticismo e até a um despudorado cinismo."

Acrescento mais uma vez. O constituinte de 1988 deu ensejo a que se observasse o princípio da moralidade que, reconheço, é de difícil conceito, mas fácil de vislumbrá-lo, quando se está diante de um regramento que não respeita outros princípios e que elege métodos aéticos para atingir fins lícitos, como a cobrança de tributos mediante violência e grave ameaça, da lei n.º 8.866/94.

Basta, para tanto, que não sejamos intelectualmente comodistas, deixando passar, sob os nossos olhos, ofensas a princípios fundamentais.

Há outras agressões a diversas disposições constitucionais, mas estas a Suprema Corte, em boa hora, identificou. Vejamos:

 

 

"EMENTA: - Ação Direta de Inconstitucionalidade.
Depositário infiel de valor pertencente à Fazenda Pública.
Medida Provisória nº  427, de 11.02.1994, reeditada pela Medida
Provisória nº  449, de 17.03.1994, convertida na 
Lei nº  8.866,de 11.04.1994, que dispôs sobre o depositário infiel de valor pertencente à Fazenda Pública.
A um primeiro exame, para os efeitos de medida cautelar, parecem, ao Tribunal, violados pelos §§ 2º  e 3º  do art. 4º  da Lei nº 8.866, de 11.04.1994, os seguintes princípios e/ou garantias constitucionais:
a) do inciso LIV do art. 5º da Constituição Federal de 1988, segundo o qual "ninguém será privado da liberdade sem o devido processo legal";
b) do inciso LV do art. 5  da C.F., que assegura "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral" "o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela
inerentes";
c) do inciso XXXV do art. 5  da C.F., que não permite se exclua da apreciação do Poder Judiciário a alegação de lesão ou ameaça de direito;
d) o da independência do Poder Judiciário, como instituição (art. 2  da C.F.) e do Juiz, como órgão de sua expressão, obrigado a fundamentar suas decisões, inclusive os decretos de prisão (inciso IX do art. 93 da C.F.), não apenas com base no que a lei permite,mas no seu livre convencimento jurídico, inclusive de ordem constitucional.
2.      Caracterizados os requisitos da plausibilidade jurídica da ação ("fumus boni iuris") e do risco de grave dano, pela demora no curso do processo da ADIn ("periculum in mora"), é de se deferir, a partir desta data, até o julgamento final da ação, a suspensão da eficácia dos referidos §§ 2  e 3  do art. 4  da Lei nº 8.866, de 11.04.1994.
3.      Em conseqüência, devem ser suspensas, também, as expressões "referida no § 2  do art. 4 ", contidas no art. 7  da mesma lei.
4.      Assim, também, as expressões "ou empregados" e "e empregados", constantes do "caput" desse mesmo art. 7  e de seu parágrafo único, respectivamente.
5.      Não se mostra necessária a suspensão do art. 8 , segundo o qual "cessará a prisão com o recolhimento do valor exigido", porque o resultado pretendido é alcançado com a suspensão, já referida, do § 2, do art. 4 ;
6.      Ficam excluídos da convalidação, expressa no art. 10, os decretos de prisão fundados, exclusivamente, no § 2  do art. 4 e os decretos de revelia fundados em seu § 3 .
7.      Medida cautelar deferida, em parte, para tais fins (por maioria), nos termos do voto do Relator.
Votação:   Por maioria.
Resultado: Deferida em parte.
Reqte : CONFEDERACAO NACIONAL DA INDUSTRIA - CNI
Reqdo: PRESIDENTE DA REPUBLICA
Reqdo: CONGRESSO NACIONAL"


Diante das inconstitucionalidades apontadas e das que o STF já admitiu liminarmente, a disposição do art. 6º, da Lei 8.860/94, como justificadora do recebimento da inicial, perde o sentido, porque não há necessidade, no caso, de constituir-se o título judicial.  O título já existe, é extrajudicial e a finalidade da lei é uma só, coagir, mediante a supressão da liberdade individual, para obter o pagamento do tributo.  Nada mais.
Por todos esses fundamentos, tenho o autor como carecedor de ação, pelo que indefiro a inicial, declarando extinto o processo sem julgamento do mérito, com base no art. 267, VI, do CPC.

P. R. I.
 

Aracaju, 22 de março de 2000.

Ricardo César Mandarino Barretto

Juiz Federal