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PODER JUDICIÁRIO - JUSTIÇA FEDERAL
Seção Judiciária do Estado de Sergipe

 

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PROCESSO N° 2004.85.00.002900-0

CLASSE 05023 — AÇÃO CIVIL PÚBLICA

AUTOR: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

RÉUS: UNIÃO FEDERAL, ESTADO DE SERGIPE E MUNICÍPIO DE ARACAJU

 

SENTENÇA.

 

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONSTITUCIONAL. DIREITO À SAÚDE. FORNECIMENTO DE COMPOSTO HIDROLISADO. TRATAMENTO DE ALERGIA ALIMENTAR MÚLTIPLA. I – O Ministério Público Federal é legitimado a ajuizar ação civil pública na tutela de direito individual indisponível (direito à saúde), sobretudo quando diz respeito à saúde infantil, nos termos da legislação aplicável (art. 127 da CF/88; art. 6o da LC n° 75/93; art. 25, IV, alínea “a” da Lei nº 8.625/93; art. 201 ECA). II - Sendo o SUS composto pela União, Estados e Municípios, impõe-se a solidariedade dos três entes federativos no pólo passivo da demanda. Precedentes do STJ. III – Inexistindo expressa proibição no ordenamento jurídico, não há de se falar de impossibilidade jurídica do pedido. IV - Como corolário do art. 196 da Carta Magna, é dado a todo o indivíduo exigir que o Estado disponibilize os meios necessários para concretizar o direito fundamental à saúde. V - Comprovada a existência da moléstia – alergia alimentar múltipla – para qual não há cura e cujo tratamento consiste em combinação de tratamento dietético - com a eliminação da dieta dos alimentos que causem alergia – e medicamentoso, sendo esse somente para de natureza paliativa da sintomatologia em caso de crise. VI - Assim sendo, o hidrolisado protéico indicado pelos médicos, apesar de se tratar de alimento, adquire, na hipótese, a natureza de verdadeiro medicamento, pois mostra-se como elemento de manutenção da saúde da criança em face da doença que a acomete, evitando que os efeitos da moléstia se manifestem.  Tal conceito, ao que parece, adequa-se exatamente à definição de remédio (“aquilo que serve para curar ou aliviar dor ou enfermidade”) ou de medicamento (“substância que objetiva curar doença, ou paliar efeito(s) dela”) trazida no Dicionário Aurélio de língua portuguesa. VII - Não se pode admitir que, em razão de ausência expressa previsão da substância em “portaria” ou de outros entraves burocráticos, haja risco de vulneração ao maior direito fundamental, que é o direito à vida. VIII – Procedência do pedido.

 

 1 - RELATÓRIO

 

Trata-se de Ação Civil Pública, com pedido de antecipação de tutela, ajuizada pelo Ministério Público Federal em face da União Federal, do Estado de Sergipe e do Município de Aracaju, objetivando que seja determinado aos Réus, de forma solidária, o fornecimento gratuito e ininterrupto de composto hidrolisado protéico denominado PREGOMIN à menor Ananda Louise Torres Alcântara e a todos os pacientes que dele necessitem, conforme prescrição médica.

 

Aduz a inicial, em resumo, que Maria Luiza Torres Alcântara apresentou representação perante o órgão ministerial informando as dificuldades enfrentadas no tratamento de alergia alimentar múltipla que sofre sua filha Ananda Louise Torres Alcântara, doença cujo tratamento indicado é alimentação especial, baseada em composto hidrolisado Pregomin, com consumo mensal de aproximadamente 20 (vinte) latas.

 

Sustenta que, em razão do alto custo do produto, a mãe da menor não tem condições de custeá-lo, razão pela qual requereu seu fornecimento perante a Secretaria de Saúde do Estado de Sergipe, no que foi informada que o produto não é medicamento excepcional, não havendo nenhuma portaria do Ministério da Saúde que contemple a doação desse tipo de alimento.

 

Argumenta o MPF que o alimento especial indicado tem natureza de medicamento e que a negativa de fornecimento configura violação do direito constitucional à saúde. Afirma ainda sua legitimidade para a causa, a legitimidade passiva dos três entes federativos e a competência da Justiça Federal para o julgamento da causa.

 

Em decisão de f. 63-68, foi deferido o pedido de antecipação de tutela, para determinar o fornecimento do produto pelos Réus, de forma solidária.

 

Em petição de f. 77 e de f. 86, a União Federal e o Município de Aracaju, respectivamente, informam o cumprimento da decisão.

 

Às f. 88, a União informa a interposição de agravo de instrumento.

 

Pedido de efeito suspensivo negado pelo TRF da 5a Região às f. 108-111.

 

Contesta a União (f. 120-133) aduzindo, preliminarmente, sua ilegitimidade passiva, a impropriedade da via eleita, a ilegitimidade ativa do MPF e a impossibilidade jurídica do pedido. No mérito, informa acerca do funcionamento da assistência farmacêutica do Ministério da Saúde, fundamentado na descentralização de gestão e funcionando com base em repasse de recursos do Ministério para Estados e Municípios, que são encarregados da coordenação e execução do programa.

 

Afirma que cada Estado, juntamente com seus Municípios, estabelece a relação de medicamentos que devem constar na relação de medicamentos básicos. Caso não haja previsão de determinado tipo de medicamento, deverá adquiri-lo com verbas do Piso de Atenção Básica, repassados pela União ou com a parte referente à sua contrapartida aos recursos federais.

 

Defende a impossibilidade do Poder Judiciário determinar a liberação de substância sem prévio estudo científico sobre a segurança no tratamento, não podendo ser aplicadas “a toque de caixa” a introdução da dieta por suplemento alimentar. Isso somente poderia ocorrer após o completo mapeamento da doença no país.

 

Em petição de f. 140-141, o MPF requer que a competência para fornecimento do produto à menor seja fixada na Secretaria de Saúde do Estado, a fim de aprimorar a eficiência do cumprimento da ordem judicial.

 

O Município de Aracaju apresenta contestação às f. 157-164, na qual aduz preliminar de carência de ação por ilegitimidade passiva. Aduz ainda a inadequação da via eleita e a impossibilidade do Judiciário determinar a implementação de políticas públicas de saúde.

No mérito, sustenta que o composto hidrolisado não é remédio e sim alimento, cabendo à família a obrigação alimentar e que o Judiciário não pode incluir ou excluir medicamento da lista do Ministério da Saúde, sob pena de ofensa ao princípio de separação de poderes.

 

Embora devidamente citado, o Estado de Sergipe não apresentou contestação, conforme certidão de f. 177.

 

É o relatório.

 

2 - FUNDAMENTAÇÃO

 

Não havendo necessidade de dilação probatória, cabe o julgamento antecipado da lide, nos termos do art. 330, I do CPC.

 

Antes de adentrar o exame do mérito, cabe examinar as preliminares aventadas em contestação.

 

Quanto à questão da legitimidade do Ministério Público e do cabimento da ação civil pública na hipótese, dispõe a Constituição Federal de 1988, em seu art. 127, caput:

 

Art. 127 - O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

 

Por sua vez, a Lei Complementar nº 75/93, que trata da organização, atribuições e o estatuto do Ministério Público da União, assim reza:

 

Art. 6º - Compete ao Ministério Público da União:

(...)

VII - promover o inquérito civil e a ação civil pública para:

(...)

c – proteção dos interesses individuais indisponíveis, difusos, e coletivos, relativos às comunidades indígenas, à família, à criança, ao adolescente, ao idoso, às minorias étnicas e ao consumidor.(...)

 

Já a Lei Orgânica do Ministério Público (Lei nº 8.625/93), por sua vez, após reprisar em seu art. 1º o art. 127 da Constituição, diz em seu art. 25, IV, alínea “a”:

 

Art. 25 - Além das funções previstas nas Constituições Federal e Estadual, na Lei Orgânica e em outras leis, incumbe, ainda, ao Ministério Público:

(...)

IV- promover o inquérito civil e a ação civil pública, na forma da lei:

a)- para proteção, prevenção e reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, e a outros interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis e homogêneos.

 

No caso, a matéria retratada nos autos, além de tratar de direito individual indisponível – tutela do direito à saúde, diz respeito também a direito de criança, o que enseja a aplicação da Lei nº 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente:

 

Art. 201. Compete ao Ministério Público:

(...)

V - promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos interesses individuais, difusos ou coletivos relativos à infância e à adolescência, inclusive os definidos no art. 220, § 3º inciso II, da Constituição Federal;

 

Acerca da matéria, leciona Hugo Nigro Mazilli:

 

As ações civis públicas e as ações mandamentais de iniciativa do Ministério Público, previstas na Lei n. 8.069/90, destinam-se à defesa não apenas dos interesses relacionados com a proteção à infância ou à adolescência; os interesses a serem defendidos poderão ser não só difusos e coletivos, como também até mesmo interesses individuais (pois não raro estaremos diante de interesses indisponíveis, ainda que meramente individuais, diante da incapacidade). (...) Tratando-se de interesses indisponíveis de criança ou adolescentes, e mesmo de interesses coletivos ou difusos relacionados com a infância e a juventude – sua defesa sempre convirá à coletividade como um todo. Confere a Lei n. 8.069/90 iniciativa ao Ministério Público para a ação civil pública, na área da infância e da juventude até mesmo  no tocante à defesa de interesses individuais, dado seu caráter de indisponibilidade. Assim, o Ministério Público poderá ingressar com ação civil pública para assegurar vaga em escola tanto para uma única criança, como para dezenas, centenas ou milhares delas... [1]

 

Assim sendo, tanto é legitimo o MPF quanto é cabível o ajuizamento de ação civil pública para a tutela de direito individual de natureza indisponível, notadamente quando diz respeito a direito de criança, como no caso dos autos.

 

A questão da legitimidade dos três entes federativos para figurar no pólo passivo em lides dessa natureza já foi devidamente apreciada pelo STJ, nos seguintes termos:

 

RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. OFENSA AO ART. 535, II, DO CPC. INEXISTÊNCIA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS PARA PESSOA CARENTE. LEGITIMIDADE DA UNIÃO, DO ESTADO E DO MUNICÍPIO PARA FIGURAREM NO PÓLO PASSIVO DA DEMANDA. 1. Inexiste ofensa ao art. 535, II, do CPC, quando as questões levadas ao conhecimento do Órgão Julgador foram por ele apreciadas. 2. Recurso no qual se discute a legitimidade passiva da União para figurar em feito cuja pretensão é o fornecimento de medicamentos imprescindíveis à manutenção de pessoa carente, portadora de atrofia cerebral gravíssima (ausência de atividade cerebral, coordenação motora e fala).  3. A Carta Magna de 1988 erige a saúde como um direito de todos e dever do Estado (art. 196). Daí, a seguinte conclusão: é obrigação do Estado, no sentido genérico (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), assegurar às pessoas desprovidas de recursos financeiros o acesso à medicação necessária para a cura de suas mazelas, em especial, as mais graves. 4. Sendo o SUS composto pela União, Estados e Municípios, impõe-se a solidariedade dos três entes federativos no pólo passivo da demanda. 5. Recurso especial desprovido. (STJ. REsp 507205/PR. Rel. Min. José Delgado. DJ 17.11.2003, p. 213).

 

Quanto à preliminar de carência de ação, fundada na suposta impossibilidade jurídica do pedido, deve-se lembrar que a impossibilidade jurídica do pedido como condição da ação deve ser compreendida unicamente quando há expressa proibição do pedido pelo ordenamento jurídico, o que não é o caso dos autos.

 

Superadas essas questões, cumpre o exame do mérito da demanda.

 

A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu art. 196, o seguinte:

 

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

 

Como se vê, a norma constitucional consagra o direito à saúde como direito fundamental, e por isso, a tal norma deve ser dada interpretação de modo a que tenha eficácia jurídica máxima. Leciona Rogério Gesta Leal:

 

No Estado Social de Direito, as garantias e os direitos conquistados e elevados à norma constitucional, não podem ficar relegados em uma região ou conceituação meramente programática, enquanto promessa de um futuro promissor, a serem cumpridas pelo legislador infraconstitucional, mas impõe-se uma vinculação direta e orgânica frente aos Poderes instituídos. Não sendo assim, aquelas conquistas não seriam eficazes e tampouco, estariam qualificando valorativamente este Estado como Social de Direito. [2]

 

Assim sendo, a jurisprudência vem consolidando o entendimento de que, como corolário do art. 196 da Carta Magna, é dado a todo o indivíduo exigir que o Estado disponibilize os meios necessários para concretizar esse direito fundamental, tais como a realização de determinados procedimentos cirúrgicos e o fornecimento de medicamentos indispensáveis ao tratamento.

 

O Superior Tribunal de Justiça assim se pronuncia acerca do tema:

 

CONSTITUCIONAL. RECURSO ESPECIAL. SUS. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. PACIENTE COM HEPATITE "C". DIREITO À VIDA E À SAÚDE.  DEVER DO ESTADO. 1.  Delegado de polícia que contraiu Hepatite "C" ao socorrer um preso que tentara suicídio. Necessidade de medicamento para cuja aquisição o servidor não dispõe de meios sem o sacrifício do seu sustento e de sua família. 2. O Sistema Único de Saúde-SUS visa a integralidade da assistência à saúde, seja individual ou coletiva, devendo atender aos que dela necessitem em qualquer grau de complexidade, de modo que, restando comprovado o acometimento do indivíduo ou de um grupo por determinada moléstia, necessitando de determinado medicamento para debelá-la, este deve ser fornecido, de modo a atender ao princípio maior, que é a garantia à vida digna. 3. O direito à vida e à disseminação das desigualdades impõe o fornecimento pelo Estado do tratamento compatível à doença adquirida no exercício da função. Efetivação da cláusula pétrea constitucional. 4. Configurada a necessidade do recorrente de ver atendida a sua pretensão, legítima e constitucionalmente garantida, posto assegurado o direito à saúde e, em última instância, à vida, sobreleva ainda destacar que a moléstia foi transmitida no exercício de sua função, e em decorrência do nobilíssimo ato de salvaguardar a vida alheia. Representaria sumum jus summa injuria, retribuir-se a quem salvou a vida alheia, com o desprezo pela sua sobrevivência. 5. Recurso especial provido. (STJ. REsp 430526/SP. Rel. Min. Luiz Fux. DJ 28.10.2002, p. 245).

 

A Suprema Corte, por sua vez, destaca a eficácia do direito fundamental à saúde no seguinte precedente:

 

PACIENTE COM HIV/AIDS - PESSOA DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS - DIREITO À VIDA E À SAÚDE - FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS - DEVER CONSTITUCIONAL DO PODER PÚBLICO (CF, ARTS. 5º, CAPUT, E 196) - PRECEDENTES (STF) - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA. - O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. - O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. - O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE MEDICAMENTOS A PESSOAS CARENTES. - O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF . (STF. RE 271286 AgR/RS. Rel. Min. Celso de Mello. DJ 24.11.2000, p. 101).

 

No caso, os documentos acostados aos autos demonstram, de forma inequívoca, que Ananda Louise Torres Alcântara, criança de quatro anos incompletos (f. 29), é acometida da moléstia “alergia alimentar múltipla”, conforme demonstram os laudos de f. 22-23 e de f. 38-39, subscritos por dois médicos diferentes.

 

Esses laudos, especialmente o de f. 38-39, são bastante explícitos quanto ao diagnóstico, à evolução da doença e às condições de tratamento, sendo que ambos unânimes na indicação de hidrolisado protéico para o tratamento da criança.

 

Extrai-se dos autos ainda que o Secretário de Saúde do Estado de Sergipe confirma a negativa no fornecimento do hidrolisado protéico PREGOMIN, sob a alegativa de que o mesmo “não é um medicamento excepcional sobre os quais discorre a Portaria 1.318/GM de 23 de julho de 2002, anexa a este processo, e mesmo que fosse, esta só contempla medicamentos com fins descritos claramente em seu texto e tabela descritiva, e não há nenhuma citação em seus artigos sobre alergias alimentares. Não existe nenhuma portaria ministerial que contemple esse tipo de alimento por parte da Secretaria de Estado da Saúde, conseqüentemente, a mesma não dispõe de nenhum tipo de repasse ou fundo destinado à compra do mesmo”. (f. 58).

 

De acordo com a literatura médica, a alergia alimentar é uma resposta anormal do sistema imunológico que é causado por proteínas de certos alimentos, causando sintomas à medida que a proteína atravessa o sistema digestivo e entra na corrente sangüínea. Assim, pode haver coceira na boca, vômito, diarréia, dor estomacal, queda de pressão arterial, irritação de pele, falta de ar, dentre outros. Tais reações podem variar de grau, entre médias e graves, sendo que as últimas podem acarretar, inclusive, choque anafilático e morte[3].

 

Quanto ao tratamento, a ciência médica é unânime ao afirmar que não há cura para a doença, cabendo apenas uma combinação de tratamento dietético – com a eliminação da dieta dos alimentos que causem alergia – e medicamentoso, sendo esse somente de natureza paliativa da sintomatologia em caso de crise[4].

 

No caso da criança retratada nos autos, conforme expressam os laudos médicos mencionados, já se tem importante vulneração do estado físico em razão das reações alérgicas pela intolerância a diversos tipos de alimento.

 

Assim, o hidrolisado protéico, indicado por ambos os médicos, apesar de se tratar de alimento, adquire, na hipótese, a natureza de verdadeiro medicamento. Vale repetir, o verdadeiro tratamento da alergia alimentar é a dieta. Se a criança não pode, em razão da doença, ingerir outro alimento, corre o risco de morte, seja pelas reações do organismo aos alimentos comuns, seja por inanição.

 

O hidrolisado protéico mostra-se como elemento de manutenção da saúde da criança em face da doença que a acomete, evitando que os efeitos da moléstia se manifestem.  Tal conceito, ao que parece, adequa-se exatamente à definição de remédio (“aquilo que serve para curar ou aliviar dor ou enfermidade”) ou de medicamento (“substância que objetiva curar doença, ou paliar efeito(s) dela”) trazida no Dicionário Aurélio de língua portuguesa.

 

Não se pode admitir que, em razão de ausência expressa previsão da substância em “portaria”, haja risco de vulneração ao maior direito fundamental, que é o direito à vida.

 

Do mesmo modo, não se pode exigir um prévio estudo estatístico acerca da incidência da doença no país para possibilitar o fornecimento do produto, pois a medida, caso adotada, teria o altíssimo custo da vida de Ananda Louise Torres Alcântara e de outras tantas crianças que padecem da mesma doença.

 

Além disso, o produto em tela é, como já se viu, amplamente aceito na comunidade médica como única terapia para a moléstia, não consistindo em tratamento experimental ou “alternativo” que poderia implicar em gastos de verba pública sem que houvesse a necessária comprovação de sua eficácia.

 

Nesse ponto, cumpre salientar que, diante da responsabilidade solidária dos três entes federativos, nada obsta o deferimento do pedido do MPF (F. 140-141) de que o fornecimento de PREGOMIN seja realizado pela Secretaria de Saúde do Estado de Sergipe, se é essa forma mais eficiente e prática de obtenção do produto pela criança, sem óbice que o Estado de Sergipe providencie, junto aos demais entes, as compensações que entender devidas.

 

Ressalte-se também que não há, no caso, ofensa ao princípio de separação de poderes. Inexiste ingerência judicial em atividade discricionária da Administração quanto ao gerenciamento interno das políticas de fornecimento de medicamentos. O que há é ordem judicial para que o Estado cumpra seu dever constitucional de prestar assistência médica àqueles que dela necessitam, usando, para isso, de todos os meios possíveis na medicina. 

 

Cabe ao Poder Judiciário empregar às normas e aos princípios constitucionais uma efetiva força jurídica e não apenas moral, simbólica ou política. A eles foi reconhecida uma aplicação direta e imediata (art. 5o, §1o, da CF/88), permitindo que o magistrado, ao se deparar com uma situação em que esteja em jogo um dado direito fundamental, possa, ele próprio, criar meios de dar efetividade a esse direito.

 

Vale mencionar ainda que o deferimento da presente medida não vai de encontro à chamada “reserva do possível”, pois, não obstante o valor do hidrolisado protéico seja elevado para a família da criança (R$ 198,00 por unidade – f. 34), tal valor não se mostra suficiente para indicar a impossibilidade dos Réus em arcar com o ônus financeiro do cumprimento da decisão judicial.

 

A questão de honorários de advogado, na hipótese em que o Ministério Público resulte vencedor, deve ser dirimida consoante o seguinte precedente do STJ:

 

PROCESSO CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS – MINISTÉRIO PÚBLICO AUTOR E VENCEDOR. 1. Na ação civil pública, a questão da verba honorária foge inteiramente das regras do CPC, sendo disciplinada pelas normas próprias da Lei 7.347/85, com a redação dada ao art. 17 pela Lei 8.078/90. 2. Somente há condenação em honorários, na ação civil pública, quando o autor for considerado litigante de má-fé, posicionando-se o STJ no sentido de não impor ao Ministério Público condenação em honorários. 3. Dentro de absoluta simetria de tratamento, não pode o parquet beneficiar-se de honorários, quando for vencedor na ação civil pública. 4. Recurso especial improvido. (STJ. REsp 493823/DF. Rel. Min. Eliana Calmon. DJ 15.03.2004)

 

3. DISPOSITIVO

 

Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE o pedido, confirmando a decisão que deferiu a antecipação de tutela, para determinar que os Réus forneçam, de forma solidária, gratuita e ininterrupta, o composto hidrolisado protéico PREGOMIN à Ananda Louise Torres Alcântara, bem como a todas as demais pessoas portadoras de alergia alimentar múltipla, desde que haja prescrição médica nesse sentido e que não tenham condições financeiras próprias para custear o tratamento.

 

No caso específico de Ananda Louise Torres Alcântara, o fornecimento do produto deve ser realizado pela Secretaria de Saúde do Estado de Sergipe, cabendo ao Estado exigir as compensações que entender devidas aos demais entes federativos co-responsáveis.

 

Sem custas ou honorários.

 

Sentença sujeita ao reexame necessário (art. 475, I, CPC)

 

Aracaju, 02 de agosto de 2004.

 

 

JÚLIO RODRIGUES COELHO NETO

Juiz Federal - Substituto 1a Vara

 

 


 

[1] In A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 491.

[2] in Perspectivas Hermenêuticas dos Direitos Humanos e Fundamentais do Brasil. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2000, p. 72.

[3]In “Food Allergy”. James Broomfield, MD.

http://health.discovery.com/diseasesandcond/encyclopedia/654.html

[4] Nesse sentido: “Strict avoidance of the allergy-causing food is the only way to avoid a reaction. (…)Currently, there are no medications that cure food allergies. Strict avoidance is the only way to prevent a reaction.” http://www.foodallergy.org/questions.html ; “In most cases, there is no cure for food allergies. Therefore, it is essential that people with food allergies protect themselves by carefully avoiding the foods that trigger their reactions, and by being prepared to treat anaphylactic reactions that occur immediately with epinephrine in combination with emergency medical care”.  http://www.allergic-reactions.com/home/causes_food.html ; “The only proven treatment for a food allergy is to avoid the food! If you suspect you or your child has a food allergy, consult an allergy specialist.” http://www.nlm.nih.gov/medlineplus/ency/article/000817.htm