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PODER JUDICIÁRIO - JUSTIÇA FEDERAL
Seção Judiciária do Estado de Sergipe

 

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Processo nº 2003.85.00.004012-0 – Classe 02000 – 2ª Vara

Mandado de Segurança

Partes: ... Alexandre Barreto Nascimento e Outros

            ... Reitor da Universidade Tiradentes - UNIT

 

 

 

 

EMENTA: CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA. LIBERDADE DE CRENÇA RELIGIOSA. ART. 5º, INCISOS VI A VIII DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.  VESTIBULANDOS. ADVENTISTAS DO 7º DIA. GARANTIA DE PARTICIPAÇÃO NO EXAME VESTIBULAR. PROVA REALIZADA EM HORÁRIO ESPECIAL. DIREITO LÍQUIDO E CERTO DOS IMPETRANTES.

I – A Constituição Federal assegura a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias, na forma do inciso VI do art. 5º. Assegura, ainda, que ninguém será privado de direitos por motivos de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei (inciso VIII do art. 5º).

II –  Trata-se de um direito que, embora fundamental, não se revela absoluto, não podendo o seu exercício ofender o interesse público.

III – Dispondo-se a parte a submeter-se ao exame vestibular em horário posterior aos dos demais concorrentes, sujeitando-se a ficar incomunicável durante todo o período – das 08 às 18h do sábado – não se há de falar em quebra do princípio isonômico que deve valer entre todos os candidatos, sequer de afronta ao interesse público.

IV – Segurança concedida.

 

                                                                                                                                S E N T E N Ç A:

 

(Relatório)

 

Alexandre Barreto Nascimento, Demógenes Soares Batista, Dilmara Pinheiro Carvalho, Ellen Gisa Prata de Oliveira, Erik Mota, Jeanne Vasconcelos, Joana Angélica Dantas de Souza, Luciana Renata Santos Santana, Michelle Fonseca Oliveira, Raquel Reis da Conceição, Rebeca Teixeira Marques, Rosicléia Santos de Queiroz e Silvana Dias Correa impetram mandado de segurança contra ato do Magnífico Reitor da Universidade Tiradentes - UNIT, alegando que se inscreveram ao exame vestibular 2003/2 da UNIT, sendo que uma das provas fora marcada para o dia 21/06/2003, um sábado. Dizem que são adventistas do sétimo dia, razão pela qual guardam, plenamente, o dia de sábado, para tanto invocando diversos trechos da Bíblia, na qual constam referências a esse preceito. Fundamentam-se no art. 5º, incisos VI e VIII da Constituição Federal, no sentido de que não pode haver cerceamento à sua liberdade religiosa, podendo-se, perfeitamente, o impetrado oferecer uma alternativa para a realização da mencionada prova, ao mesmo tempo em que não se fira a isonomia com os demais vestibulandos. Tecem considerações acerca da alternativa à prestação obrigatória do serviço militar, citando diversos julgados em favor de sua tese, requerendo a concessão de liminar e, ao final, a procedência do mandamus.

A liminar foi deferida, conforme decisão de fls. 82/84.

A autoridade, apontada como coatora, presta as informações, alegando que o dia de Sábado é considerado pelo ordenamento acadêmico da Instituição como dia integrante da semana letiva, onde existem atividades acadêmicas durante todo o semestre letivo, fazendo com que as normas estabelecidas pelos órgãos superiores que ditam as regras gerais para a Educação Superior no Brasil sejam integralmente cumpridas no que concerne ao número de horas-aula. Afirma que inexistiu por parte da Instituição de Ensino qualquer atitude discriminatória, requerendo a denegação da medida.

O representante do Ministério Público Federal, Procurador Regional da República Gilson Gama Monteiro, em parecer acostado à fl. 93, manifesta-se pela concessão da segurança, ou mesmo a declaração de prejudicialidade do mandamus, em decorrência da realização da prova.

 

(Fundamentação)

 

1 – Considerações prévias:

Discute-se na presente demanda o direito dos impetrantes em não se submeterem a uma prova do exame vestibular da Universidade Tiradentes, no horário das 08 às 18horas, do sábado, dia 21/06/2003. É certo que a liminar, concedida em tempo hábil, permitiu aos requerentes usufruir o direito, o que se poderia inferir ter o presente mandamus perdido o seu objeto.

Tal não ocorreu, contudo. É que resta, em um exame final, confirmar ou não se assistia direito líquido e certo aos impetrantes, possibilitando-lhes a obtenção de uma garantia – não mais meramente provisória – de que não podiam ser submetidos à realização da prova do exame vestibular naquele horário. É que os efeitos decorrentes da referida participação podem ser convalidados ou não.

Assim, inocorre perda de objeto do mandamus, no caso ora em apreciação.

 

2 – Mérito:

No caso dos autos, dois aspectos centrais devem ser observados nesta decisão: um refere-se à liberdade religiosa assegurada constitucionalmente; o outro diz respeito ao interesse público. Como é sabido, nenhum direito, por mais fundamental que seja, pode, no seu exercício, contrariar o interesse público.

Com efeito, não se admite que, sob o fundamento da liberdade religiosa, tenha que se tolerar cultos contrários à moral e aos bons costumes, bem como aqueles atentatórios à paz e à convivência social. A exteriorização da liberdade religiosa, dessa forma, encontra limites no interesse público.

Por ocasião da análise da liminar (fls. 82/84), deixei assentado que não é demais dizer que nenhum direito fundamental é absoluto. Em existindo conflito, há de prevalecer o princípio de maior peso, cuja densidade, aferida no exame do caso concreto, se revele suficiente para impor-se.

E, adiante, complementei:

Assim, é necessário, de logo, afirmar-se – até mesmo para efeito de precedente -, que o sábado não se configura como preceito absoluto. A sua guarda, embora se mostre como uma faceta plena da liberdade religiosa, não pode obstar um outro direito fundamental, que, no plano concreto, seja mais importante.

Aliás, tal premissa nem precisa ser fundada em alguma monografia sobre o tema da proporcionalidade e/ou razoabilidade quando há colidência de princípios, igualmente fundamentais. Uma lição imorredoura acerca disso pode ser encontrada na própria fonte bíblica, como se vê abaixo:

“Partindo dali, Jesus entrou na sinagoga. Encontrava-se lá um homem que tinha a mão seca. Alguém perguntou a Jesus: ‘É permitido curar no dia de sábado?’ Isto, para poder acusá-lo. Jesus respondeu-lhe: ‘Há alguém entre vós que, tendo uma única ovelha e se esta cair num poço no dia de sábado, não a irá procurar e retirar? Não vale o homem muito mais que uma ovelha? É permitido, pois, fazer o bem no dia de sábado’” (Mateus 12, 9-13). (Bíblia sagrada, 87. ed., São Paulo: Editora Ave Maria Ltda. 1992, pp. 1297-1298).

Verdadeira lição de proporcionalidade. Assim, nem tudo é vedado fazer ao sábado, para os que guardam o mencionado preceito.

Essa referência é necessária, para se evitar, no futuro, a invocação do princípio como se fora adequado para todas as situações. É preciso dizer, então, que, no caso concreto, é que surgem os condicionantes.

De sua parte, a liberdade religiosa encontra-se assegurada pela Constituição Federal de 1988, de forma expressa, como se deduz do art. 5º, incisos VI a VIII, verbis:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.

VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva.

VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.

O Estado brasileiro é, assim, e seguindo a linha decorrente da ruptura efetivada pela proclamação da República, um estado laico. O art. 19, inciso I, da CF/88 é enfático nesse aspecto. Antes, no Império, a Constituição de 1824 admitia a liberdade religiosa, porém, com características singulares. É que, à época, embora houvesse liberdade religiosa para crer, inexistia a mesma para professá-la livremente, sofrendo restrições na sua expressão pública. Apenas à Igreja Católica Apostólica Romana era permitida essa ampla liberdade de expressão religiosa. Não podiam as outras seitas praticar livremente seus cultos. A título de exemplo, aos locais de oração não era permitida a utilização de sinos e as manifestações públicas de suas crenças eram cerceadas.

No caso em exame, os impetrantes, integrantes da Igreja Adventista do Sétimo Dia (fl. 48) e inscritos para a realização do exame vestibular perante a UNIT (fls. 36/46), pretendem não se submeter à prova do dia 21/06/2003 (fl. 69), no horário entre as 08h e as 18h. É que, na crença dos impetrantes e segundo o que deduzem das Escrituras Sagradas, o sábado deve ser guardado. Assim, durante tal dia, os fiéis devem direcionar suas atividades para a oração e adoração a Deus. A religião dos impetrantes tem como um dos seus fundamentos basilares a guarda desse dia. Assim, para uma pessoa que professa tal fé, deixar de respeitar essa crença, corresponde a um vilipêndio de sua consciência religiosa.

Há de se indagar até que ponto o pleito dos impetrantes traz risco ao interesse público. Ora, não vislumbro tal possibilidade. É que o seu pedido visa a que se submetam à dita prova, após o horário das 18h, sendo que ficarão incomunicáveis no período entre as 08h e 18h. Devo salientar que não há de se invocar, sequer, quebra do princípio isonômico entre os concorrentes, porque se se houvesse de admiti-la, o seria apenas em relação aos próprios impetrantes, que se verão trancafiados em uma sala durante cerca de 10 horas, aguardando a efetiva participação no certame. Como dito na inicial, o risco assumido é somente dos Impetrantes. Nenhum outro cidadão poderá ser prejudicado, neste caso, pela garantia da Liberdade Religiosa. Não haverá prejuízo para que se ofereça alternativas para os Impetrantes, pois como já dito, ficarão enclausurados e incomunicáveis até o pôr-do-sol (18h), quando começarão as provas. (fl. 13).

Aliás, acentuei, quando da concessão da liminar, que não se pode olvidar que o sacrifício praticado, por vontade própria dos impetrantes, é revelador de uma fé que transcende os limites do cognoscível. Apenas uma intensa convicção vem a justificar tal ato. A este Juízo, indiferente aos motivos recônditos por que assim procedem os requerentes, basta fundar-se na Constituição Federal para deferir o seu direito. (fls. 83/84).

Ademais, além da própria liberdade de crença religiosa, encontra-se em jogo, também, o direito à educação. Inadmitir o direito líquido e certo dos impetrantes para que se submetam à prova no horário requerido, equivale a negar-lhes o acesso à universidade, não obstante possam estar preparados intelectualmente para o certame.

A liberdade religiosa encontra apoio, ainda, na diversidade de que é revestida a sociedade. Não se trata de enfocar o tecido social como algo monolítico. O respeito a essa diversidade é a mais clara manifestação de uma sociedade democrática. Invoco, uma vez mais, o que disse na decisão que concedi initio litis:

A liberdade religiosa, como aliás todas as ‘liberdades’, pressupõe a diferença. E a diferença que não agride o interesse público, nem impõe sacrifício injustificável a outrem, tem a garantia da tolerância, que, mesmo convertida em direito positivo, não deixa de ter assento na razão.

E não são palavras deste Julgador, apenas. Um livro, verdadeiro libelo em favor da liberdade religiosa, da lavra do mais eminente mestre do iluminismo – Voltaire -, já o fez nos idos de 1763. Trata-se do famoso caso da morte de Jean Calas. Voltaire, partindo do caso concreto, amplia suas perspectivas, para revelar uma obra, que, denominada de “Tratado sobre a tolerância”, é bem mais que isso. Suas palavras bastam:

“Não só é cruel perseguir nesta curta vida os que não pensam como nós, como também suponho ser ousado demais pronunciar sua condenação eterna” (Tratado sobre a tolerância : a propósito da morte de Jean Calas. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 127).

A liberdade religiosa, hoje, de certa forma, aceita e vivenciada na maior parte do mundo, teve que passar por momentos históricos de confronto e de conflitos sanguinários. Não é ainda um ensinamento pacífico, mas a sua construção se perfaz na praxis, diuturna e silenciosamente.

 

(Dispositivo)

 

Ante o exposto, concedo a segurança requerida, confirmando, na integralidade, a liminar deferida às fls. 82/84 dos autos.

Custas pelo impetrado.

Sem honorários advocatícios, em conformidade com o enunciado da Súmula 512 do STF.

Sentença sujeita ao reexame necessário.

P.R.I.C.

 

Aracaju, 15 de outubro de 2003.

 

                      Ronivon de Aragão

                      Juiz Federal Substituto