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PODER JUDICIÁRIO - JUSTIÇA FEDERAL
Seção Judiciária do Estado de Sergipe

 

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Processo n.º 96.494-3 - classe 01000 - 1ª Vara

Ação: Ordinária

Autor: Valdemi Muniz Barreto

Ré: União Federal

Juiz Federal: Ricardo César Mandarino Barretto

 

Administrativo. Processual. Reforma de militar. Ainda que o autor não possa ser declarado incapaz pela razão alegada – deficiência auditiva – enfermidades supervenientes caracterizadoras da impossibilidade de submeter-se ao trabalho militar, amparam a pretensão do réu. Inteligência do art. 462, do CPC. Ação procedente em parte.

 

 

SENTENÇA:

 

 

Vistos, etc...

 

Valdemi Muniz Barreto, qualificado na inicial de fls. 02, propõe a presente ação ordinária em face da União Federal, objetivando seja condenada a ré a proceder à sua reforma, nos quadros do Exército, concedendo-se-lhe as vantagens que elenca ao final de sua peça.

Alega que, ocupando o posto de "Cabo Músico", foi declarado incapaz definitivamente para o serviço do Exército, por sofrer de "Disacusia Sensório-neural moderada, tipo trauma bi-lateral" (deficiência auditiva). Realizando-se nova perícia, em grau de recurso, a conclusão foi a mesma a que se chegou quando do primeiro exame. Diante disso, passou à condição de agregado, no aguardo da tramitação de seu "processo de reforma".

Todavia, o requerimento referente à reforma não teria sido devidamente encaminhado, traduzindo-se em indeferimento. Em conseqüência, seus superiores hierárquicos impuseram-lhe o retorno às atividades, ainda que com readaptação em funções diferentes das que desempenhava. Diante da impossibilidade de voltar ao labor militar, requereu e obteve licença prêmio.

Agora, diante do Judiciário, busca ver seu direito assegurado.

Com a inicial, os documentos de fls. 06 a 44.

Citada, a União Federal contesta, afirmando que o autor só obteve a licença prêmio por ter sido considerado apto ao serviço do exército e, assim, em nada estaria relacionada com sua pretensa incapacidade.

Diz que a decisão da Junta Médica que avaliara o demandante, em grau de recurso, incorrera em erro material, pois não teria considerado o índice de discriminação vocal caracterizador de incapacidade, estabelecido pela Portaria nº 024-DGS. Constado o equívoco, o Chefe do Escalão Logístico da 6º Região Militar devolveu o laudo à referida Junta, para que fosse retificado. Com isso, deixou de existir amparo legal para a reforma do requerente, que está em perfeita condição de saúde para as atividades militares, em funções outras que não as de músico.

Assevera, ainda, que, à luz da legislação aplicável, mesmo que venha a ser ordenada a reforma, não existe fundamento para a concessão das vantagens requeridas.

Finalizando, entende ser incabível a retroatividade da reforma e a aplicação da súmula 71, do extinto TFR, como critério da correção da reforma.

Pede a improcedência do pedido.

Intimado, o autor manifestou-se sobre a contestação.

Em audiência, frustrada a conciliação, fora determinada a produção de prova pericial.

Laudo anexado às fls. 149/151.

Apresentam as partes memoriais, a ré às fls. 158/161 e o autor, às fls. 169/171.

 

É o relatório.

A solução da lide passa por três momentos distintos. O primeiro, consiste em verificar se o autor é ou não apto para o serviço do exército. O segundo, acaso verificada a inaptidão, consiste em verificar se está ela circunscrita à atividade militar ou se atinge a capacidade laborativa também em âmbito civil. Finalmente, na dependência das conclusões que forem formadas, deverá ser analisada a pertinência das vantagens que se pretende façam acompanhar a concessão da reforma.

Passo ao primeiro ponto.

Nesse aspecto, além dos documentos trazidos aos autos e o laudo pericial, merecem ser considerados fatos supervenientes à propositura da ação, na forma do art. 462 do CPC, que adiante serão explicitados.

Pois bem. O autor trouxe aos autos dois laudos que, taxativamente, consideraram-no incapacitado para o serviço do Exército, o que lhe daria, em tese, o direito à reforma. A ré, por seu turno, explicou que a decisão em grau de recurso estava irregular, razão pela qual o próprio ente administrativo, em atenção ao princípio da autotutela, modificou-a. Diante disso, nada mais natural que se designasse, em juízo, uma perícia para dirimir a controvérsia. E assim foi feito.

Produzida a prova, por força da praxe forense, com certeza esperam as partes que a decisão que aqui se esboça siga o respectivo laudo em suas conclusões. Não é bem assim. Vou ousar buscar abrigo em um princípio que, academicamente, é enaltecido a não mais poder, mas que, na prática, raramente é utilizado para criar divergência com uma prova pericial. Vou fazer uso do princípio da livre convicção, valendo-me dos ensinamentos de Antônio Carlos Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, em "Teoria Geral do Processo" – 14ª edição – pág. 67. Vejamos:

 

"Princípio da persuasão racional do Juiz.

Tal princípio regula a apreciação da avaliação das provas existentes nos autos, indicando que o juiz deve formar livremente sua convicção. Situa-se entre o sistema de prova legal e o do julgamento secundum conscientiam.

O primeiro (prova legal) significa atribuir aos elementos probatórios valor inalterável e prefixado, que o juiz aplica mecanicamente. O segundo coloca-se no pólo oposto: o juiz pode decidir com base na prova dos autos, mas também sem provas e até mesmo contra a prova. Exemplo do sistema da prova legal é dado pelo antigo processo germânico, onde a prova representava, na realidade, uma invocação a Deus. Ao juiz não competia a função de examinar o caso, mas somente a de ajudar as partes a obter a decisão divina; a convicção subjetiva do tribunal só entrava em jogo com relação à atribuição da prova. O princípio da prova legal também predominou largamente na Europa, no direito romano-canônico e no comum, com a determinação de regras aritméticas e de uma complicada doutrina envolvida num sistema de presunções, na tentativa da lógica escolástica de resolver tudo a priori.

O princípio SECUNDUM CONSCIENTIAM é notado, embora com certa atenuação, pelos tribunais do júri, compostos por juízes populares.

A partir do século XVI, porém, começou a delinear-se o sistema intermediário do livre convencimento do juiz, ou da persuasão racional, que se consolidou sobretudo com a Revolução Francesa.

Um decreto da assembléia constituinte de 1791 determinava aos jurados que julgassem "suivant votre conscience et votre intime conviction"; o código napoleônico de processo civil acolheu implicitamente o mesmo princípio. Mas é sobretudo com os estatutos processuais da Alemanha e Áustria que o juiz se libertou completamente das fórmulas numéricas. O Brasil também adota o princípio da persuasão racional: o juiz não é desvinculado da prova e dos elementos existentes nos autos (quod nos est in actis non est in mundo), mas a sua apreciação não depende de critérios legais determinados a priori. O juiz só decide com base nos elementos existentes no processo, mas os avalia segundo critérios críticos e racionais (CPC, arts. 131 e 436; CPP, arts. 157 e 182).

Essa liberdade de convicção, porém, não equivale à sua formação arbitrária: o convencimento deve ser motivado (Const., art. 93, inc. IX; CPP, arts. 381, inc. III; CPC, arts. 131, 165 e 458, inc. II), não podendo o juiz desprezar as regras legais porventura existente (CPC, arts. 334, inc. IV; CPP, arts. 158 e 167) e as máximas da experiência (CPC, art. 335).

O princípio do livre convencimento do juiz prende-se diretamente ao sistema da oralidade e especificamente a um dos seus postulados, a imediação."

Com efeito, embora o trabalho elaborado pela ilustre perita revele situações fáticas de forma apropriada, suas respostas e conclusões parecem-me vagas, imprecisas, talvez fruto de uma pequena desatenção em relação à legislação que regula os casos de incapacidade para o serviço militar. Vejamos.

Respondendo o 2º quesito do autor (fls. 149), assim se manifestou a experta:

 

"Continuo a afirmar que a perda auditiva nos níveis apresentados não é incapacitante. O paciente porém tem Diabetes, e já apresenta também: zumbidos, tonturas e instabilidade emocional, o que dificulta seu exercício em qualquer atividade." (SIC)

Parece-me uma resposta completamente evasiva, como se quisesse passar ao largo de qualquer posição definida, pois, se primeiro diz que a deficiência auditiva não é incapacitante, logo depois chama a atenção para o fato de o autor ser portador de diabetes e de algumas disfunções de ordem neurológica, o que dificultaria o exercício de qualquer atividade. Todavia, não explica se, da conjugação de tais fatores, resulta ou não a incapacidade para o desempenho de atividades militares.

Respondendo à ré, permanece a imprecisão (fls. 151):

 

"(. . .) Quanto à perda auditiva apresentada pelo periciado somente ela não o invalida para o Serviço Militar ou outros atos da vida civil. No entanto, o mesmo apresenta sintomas subjetivos, como: tonturas e zumbidos, que podem causar limitação da capacidade laborativa." (SIC) (grifos nossos).

Some-se isso ao fato de não ter sido esboçado, com o respeitável laudo, um relatório, mínimo que fosse, nem tampouco – o que é mais grave – foi apresentada uma conclusão formal, direta. Esta surge apenas por dedução, mesmo assim, fundada em dúvidas, como visto.

Os "sintomas subjetivos", mencionados pela d. perita, já tinham sido pormenorizados anteriormente nestes autos, com a manifestação do assistente técnico indicado pelo autor. Ressalto, de antemão, que dou credibilidade a boa parte das considerações constantes das fls. 140 e 141 por estarem as mesmas acompanhadas de exames médicos inteligíveis. Sem embargo disso, a ré não apresentou qualquer impugnação, embora tenha havido a oportunidade para tanto.

Assim, percebe-se que o autor, além da diabetes e da deficiência auditiva, é acometido de insuficiência vascular cerebral, que acarreta os ditos sintomas, além de problemas com a memória.

É bem verdade que tais enfermidades não existiam (ou ao menos, não se sabia que existiam) ao tempo da propositura da ação. Mas elas não alteram a causa de pedir esposada na inicial, que nada mais é do que a alegada incapacidade para o trabalho. Por isso, deve ser observado aqui o art. 462 do CPC, pois estamos diante de fatos constitutivos supervenientes.

Estudando-se a portaria nº 024-DGS, trazida aos autos pela própria ré, constata-se que todas as enfermidades que o autor contraiu, desconsiderada sua deficiência auditiva, ao menos isoladamente, dão causa à incapacitação para o serviço militar. A diabetes, por exemplo, motiva incapacidade definitiva ou até mesmo invalidez, a depender das circunstâncias. Há que se lembrar que, no caso, até mesmo o assistente técnico da ré considerou necessária a assistência ambulatorial do autor em face de seu quadro geral de saúde e nisso, certamente, tem grande responsabilidade a diabetes, de onde deriva a necessidade de medicamentos como a insulina (fls. 68). Quanto à insuficiência vascular cerebral, além de ser uma doença em si, dá origem a outras doenças, como a enxaqueca, levando ao enquadramento no Anexo F – 6º Grupo, da referida portaria, ocasionando a incapacidade permanente ou invalidez, conforme o caso.

Ora, pensando no conjunto de reveses que afetam a saúde do autor, chega a ser uma maldade considerá-lo apto para a prestação do serviço militar. Friso, mais uma vez, que não se está afirmando que a deficiência auditiva, isoladamente, dá causa à incapacidade. Neste ponto não discordo do laudo pericial. A incapacidade resulta da conjugação de todos esses fatores, de acordo com a legislação aplicável.

Chegando à segunda questão apresentada, conquanto já tenha dito que o autor está incapacitado para o serviço militar, não considero, entretanto, que o mesmo seja inválido, isto é, seja incapaz para o trabalho em regime civil.

Conforme assinalado acima, a falha da perícia reside no fato de não ter levado em conta as peculiaridades que envolvem a atividade militar, ao mesmo tempo em que foram inobservadas as conseqüências das enfermidades supervenientes nos termos da portaria nº 024-DGS. Se a discussão girasse em torno de um trabalhador civil, o laudo estaria perfeito, pois, nesse caso, há uma maior flexibilidade em aspectos cruciais da atividade laborativa, como, por exemplo, a adequação do ambiente de trabalho às suas condições de saúde, ritmo de produção, jornada diária e semanal de trabalho, etc., aspectos esses que, em âmbito militar, estão adstritos a uma disciplina mais severa. Em suma, em atividades civis não são obstadas pelas enfermidades do autor, pois podem ser desenvolvidas sem os rigores excessivos que a vida militar impõe.

Não bastasse isso, o autor recebeu instrução e qualificação profissional no Exército, o que, de certo modo, facilita sua inserção no mercado de trabalho, mesmo que seja como autônomo.

Verificado que o autor está incapacitado para o serviço militar, continuando, entretanto, apto para as atividades civis, cumpre agora observar se as vantagens que o autor pretende agregar à sua reforma são devidas ou não.

A reforma da graduação no posto de 3º sargento, imediatamente superior ao que ocupava o acionante quando estava em atividade, é descabida.

A Lei 6.880/80 só confere tal direito quando verificadas as hipóteses dos incisos I e II do seu artigo 108, ou ainda, quando for caso de invalidez, estiver enquadrado nos incisos III, IV e V (art. 110 e seu § 1º). Ora, o dispositivo que se aplica ao autor é o inciso VI, do mencionado artigo. Vejamos.

 

Art. 108. A incapacidade definitiva pode sobrevir em conseqüência de:

...........................................................................

VI – Acidente ou doença, moléstia ou enfermidade, sem relação de causa e efeito com o serviço. (Grifo nosso)

E, assim o é, porque não há qualquer indício de que as enfermidades do autor advieram do serviço militar. Lembro, mais uma vez, que a deficiência auditiva, por si só, não o incapacita e, mesmo que fosse diferente, nem mesmo os primitivos laudos do serviço médico militar acenaram para a circunstância de que ela fosse efetivamente causada pelas atividades que desenvolvia.

O auxílio-invalidez também não é devido, pois, como o próprio nome sugere, só tem lugar quando o militar é reformado como inválido (o que, repito, não é o caso do autor), cumulando-se com a circunstância de necessitar de internação especializada, militar ou não ou, ainda, se necessitar de serviços de enfermagem, em caráter permanente ou domiciliar (art. 69, I, II e § 1º, da Lei 8.237/91). Além de o autor não ser inválido, não se pode confundir acompanhamento ambulatorial que, lembre-se, é preciso, com serviços de enfermagem de caráter permanente, menos ainda domiciliar Vai grande distância de um a outro.

Quanto à gratificação de tempo de serviço, não há qualquer disposição legal que assegure ao reformado por incapacidade para atividades militares o direito à percepção do percentual de 25%. Ao contrário, o art. 111, da Lei 6.880/80, em seu inciso I, prescreve, de maneira clara, que a remuneração a que o autor faz jus é apenas proporcional. Confira-se:

 

Art. 111. O militar da ativa julgado incapaz definitivamente por um dos motivos constantes do item VI do art. 108 será reformado:

I – com remuneração proporcional ao tempo de serviço, se oficial ou praça com estabilidade assegurada, e

...........................................................................

 

Desse modo, assiste razão à ré quando assevera que o autor tem direito ao percentual de 13%, a título de gratificação de tempo de serviço.

Em relação à gratificação de habilitação militar, há que se ter em mente que tal verba só existe para os militares em atividade. Passando à inatividade, só há direito à parcela de tal gratificação que estiver incorporada ao soldo (art. 59, II, da Lei 8.237/91). Se o autor incorporou, continuará recebendo a parcela relativa à incorporação com sua reforma. Agora, o pedido, como posto, dá a entender que o autor tinha o direito a receber semelhante gratificação quando em efetivo exercício, mas não recebeu. Se é assim, a conseqüência é que este pedido não decorre logicamente da causa de pedir, que, reitero, é a incapacidade. A incapacidade tem como conclusão a reforma, não o pagamento de uma verba que é devida ao militar em atividade.

O adicional de inatividade, de outro modo, é pertinente. O autor, de acordo com esta decisão, será reformado, ou seja, passará a inatividade, bastando uma leitura no art. 68 da Lei 8.237/91 para que se constate que o autor tem direito à sua percepção.

Por fim, cabe analisar a questão da retroatividade da reforma.

Os fatos que amparam a pretensão do requerente, leia-se acima, não residem na sua deficiência auditiva, mas em enfermidades supervenientes, aqui consideradas por força do art. 462 do CPC.

Com isso, se a situação fática não estava configurada à época da propositura da ação, esta não pode receber um provimento jurisdicional de cunho meramente declaratório. Haverá sim uma declaração, declaração de que o autor tem direito à reforma e, assim, será criada uma nova relação jurídica, o que caracteriza a constitutividade. Por sua vez, a sentença, quando constitutiva, tem efeito ex nunc.

Ora, dessa forma, não há lugar para a retroatividade. A reforma só tem lugar a partir deste julgamento.

Pelos mesmos argumentos, além de outros que poderiam ser utilizados, não há lugar para correção monetária segundo os critérios da súmula nº 71 do TFR.

Isto posto, julgo procedente, em parte, o pedido, condenando a ré apenas a proceder à reforma do autor, no mesmo posto ocupado até então, por incapacidade definitiva para o serviço do exército, bem como a pagar-lhe o adicional de inatividade e a gratificação de tempo de serviço, no percentual de 13%, a partir desta data, contando-se juros e correção monetária até o efetivo cumprimento desta decisão.

Sem honorários, face a sucumbência recíproca.

 

Isento de custas, de acordo com as normas da Assistência Judiciária Gratuita.

Sentença sujeita a reexame.

P. R. I.

 

Aracaju, 16 de novembro de 1999.

 

 

 

Ricardo César Mandarino Barretto

Juiz Federal da 1ª Vara