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PODER JUDICIÁRIO - JUSTIÇA FEDERAL
Seção Judiciária do Estado de Sergipe

 

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Processo nº. 99.1068-0 - Classe 7000 - 1ª. Vara.

Ação: Criminal.

Autor: Ministério Público Federal

Réu(s): Jackson Crisóstomo dos Santos e outros.

Juiz: Ricardo César Mandarino Barretto.

Penal e Processual Penal. Julgamento antecipado da lide. Possibilidade, quando se tratar de hipótese de absolvição do réu.

Serviços de radiodifusão. Falta de autorização para funcionamento. Leis nºs. 9.472/97 e 9.612/98. Emissora clandestina. Inocorrência de perigo ao bem protegido pela norma penal. Ilícito administrativo. Absolvição.

 

SENTENÇA:

Vistos, etc...

 

O Representante do Ministério Público Federal ingressou com a presente ação criminal contra Maria Lúcia de Barros Santos, Jackson Crisóstomo dos Santos, José Aelson dos Santos e Carlos Alberto Matos de Lima, qualificados na inicial de fls. 02, como incursos no delito do art. 183, da Lei nº 9.472, de 16 de julho de 1997, por haverem desenvolvido atividades clandestinas de radiodifusão, operando, ilicitamente, uma rádio comunitária FM, na frequência de 94,9MHz, e a qual possuía potência de 48W, pertencente à Associação Comunitária dos Moradores do Bairro Paraguai, no Município de Aquidabã/SE, da qual faziam parte.

Laudo pericial e informação técnica às fls. 32/33 e 47, respectivamente.

Recebida a denúncia (fls. 109), foram os réus interrogados (fls. 158/159, 160/161, 162/164 e 165/166).

Em seu interrogatório (fls. 158 a 159), o acusado Jackson Crisóstomo dos Santos esclareceu que era vice-presidente da Associação dos Moradores do Bairro Paraguai, havendo participado da implantação da rádio a que se refera a denúncia, a qual deveria possuir 25W de potência. Posteriormente ao seu funcionamento, vieram a solicitar autorização ao Ministério das Comunicações.

Aduz, ainda, que a programação da emissora era voltada para a comunidade local.

Ao ser ouvida em Juízo, a ré Maria Lúcia de Barros Santos confirma os termos da denúncia, alegando que os recursos para aquisição da aparelhagem necessária à instalação da emissora, foram conseguidos junto à comunidade, e somente após a sua instalação, comunicou o fato ao Ministério das Comunicações.

Também sustenta que a potência da rádio era de 25W, tendo ocorrido extrapolação da mesma algumas vezes, mas logo diligenciando para solução do problema (fls. 160 a 161).

José Aelson dos Santos, ao ser interrogado (fls. 162 a 164), assevera ter, efetivamente, participado da compra e instalação dos aparelhos da rádio comunitária, sendo o presidente do seu Conselho, esclarecendo que adquiriu o transmissor da empresa Montel, com potência de 25W, conforme consta da nota fiscal.

Revela ter solicitado um plano de viabilidade técnica para implantação da emissora e procurado, tão-logo soube da existência de um projeto de lei regulamentador das rádios comunitárias, adequar-se ao mesmo, aduzindo, também, que a rádio tinha fins sociais.

O réu Carlos Alberto Matos de Lima, ao ser interrogado (fls. 165 a 166), sustenta haver ingressado no Conselho gerenciador da rádio comunitária já após o seu regular funcionamento, sendo do seu conhecimento, através do acusado Aelson, que a potência do transmissor era de 25W, e que chegou a perceber uma oscilação para maior.

Afirma, também, que a programação veiculada estava de acordo com o projeto de lei pertinente.

Concedido prazo para defesa prévia, foi esta apresentada pelos acusados às fls. 173/175.

Foi ouvida uma testemunha de Acusação (fl. 199).

Nas fls. 206 e 207, a defesa do réus insiste na oitiva das demais testemunhas arroladas pela Acusação.

O M.P.F., à fl. 209-verso, dá-se por satisfeito com a prova produzida, requerendo o proseguimento do feito.

 

É o relatório.

 

Do julgamento antecipado. Possibilidade.

Os presentes autos não tiveram instrução concluída, tal como prescrevem as disposições dos arts. 394 a 405 e 498 a 502, do CPP, porque entendo possível a hipótese de julgamento antecipado da lide em procedimentos criminais, quando, em qualquer fase do processo, o juiz convença-se que a hipótese é de absolvição, seja qual for o fundamento.

Evidentemente que o Código de Processo Penal não disciplina o julgamento antecipado da lide, na forma como o faz o Código de Processo Civil, em seu art. 330, daí porque a questão parece encontar resistência perante os Tribunais, fruto, imagino, de um certo comodismo intelectual de nós, juízes, e de um certo receio, por parte dos advogados e doutrinadores, em quebrar princípios rígidos, absorvidos pela nossa cultura conservadora em matéria de processo.

Não vejo, entretanto, qualquer dificuldade em transpor, do CPC para o CPP, as disposições que disciplinam o julgamento antecipado da lide, aplicando-o ao procedimento criminal, mas restrito, apenas, à hipótese de absolvição.

É que no art. 3.º, do CPP, o legislador admitiu, para a lei processual penal, "a interpretação extensiva e a aplicação analógica", bem como o suplemento dos princípios gerais do Direito.

O instituto do julgamento antecipado da lide, no processo civil, foi criado com o escopo de agilizar o processo, tornando mais célere a prestação jurisdicional, evitando-se longas instruções, quando se trate de matéria de direito ou de matéria de direito e de fato, que não necessite produzir prova em audiência, bem como no caso de revelia (art. 330, incisos I e II).

Para a hipótese de revelia, penso não ser possível a sua aplicação, quando se cuide de direito indisponível.

No processo penal, o julgamento antecipado não pode ser utilizado nas situações elencadas no CPC, de forma irrestrita, sob pena de afronta ao direito de ampla defesa do réu.

Se o juiz, entretanto, logo após o interrogatório, ou em qualquer fase, convence-se da eventual absolvição do acusado, não há prejuízo para este, em se optar pelo julgamento antecipado da lide, impedindo-se uma instrução longa, constrangedora e prejudicial à própria imagem de quem se vê processado criminalmente.

Ninguém tem dúvida dos danos morais suportados pelo réu, pelo só fato de ser submetido a uma ação penal. Se a hipótese é de absolvição, uma prolongada instrução atenta contra o respeito à dignidade da pessoa humana, que há de ser observada no devido processo legal, podendo ensejar, até, reparação de danos morais por conta do Estado.

No correr da pena, dessa reflexão, ouso dizer que o julgamento antecipado da lide, nesses casos, é, inclusive, um direito do réu. Justifico.

O legislador, ainda que timidamente, vem admitindo julgamento antecipado nas hipóteses que elenca. Vejamos.

A rejeição da denúncia, ocorrente a situação do art. 43, do CPP, não caracteriza julgamento antecipado. Antes, cuida das condições da ação. Mas, circunstâncias há em que, ao juiz só é possível convencer-se da inocência do acusado após o interrogatório. Em nossa prática de julgadores, temos exemplos incontáveis, a angustiar o espírito do magistrado, em submeter o denunciado a um processo quando, posteriormente ao interrogatório, está convicto da sua inocência.

Tanto é danosa a instrução processual para a imagem e o conceito de homem de bem, que todo cidadão honrado almeja preservar, que o legislador, na hipótese dos crimes de responsabilidade dos funcionários públicos, elegeu a regra de que o despacho de recebimento, ou não, da denúncia, somente ocorrerá após a notificação do mesmo para responder previamente. Assegura-se ao funcionário público uma defesa preliminar antes de se constituir réu, evidentemente porque o servidor do Estado, mais do que o cidadão comum, necessita passar, à comunidade onde exerce suas atividades, uma imagem de respeito e credibilidade maior que aquela de que prescindem os demais cidadãos.

Em face do Estado, não tenho dúvida que se trata de preceito relevante, mas, em face do cidadão, do seu direito subjetivo à preservação da imagem, essa regra, por força da isonomia contida no art. 5.º, da Constituição Federal, há que ser estendida para todos, daí porque o julgamento antecipado da lide, na hipótese de absolvição do réu, impõe-se como forma de garantir a honra, a intimidade e a imagem das pessoas, direitos sagrados, elencados no inciso X, do art. 5.º, da Constituição.

O art. 6.º, da Lei n.º 8.038, de 28.05.90, nos processos de competência originária dos tribunais, também elege a defesa prévia como condição ao recebimento da denúncia. Isso é assim, porque, nos processos de competência originária dos tribunais, o réu é, sempre, pessoa pública, cuja imagem, se arranhada, poderá causar-lhe danos irreparáveis.

Toda essa questão já vem sendo refletida pelos operadores do Direito, tanto que, no projeto de reforma do CPP, a denúncia só será recebida após o interrogatório do acusado.

A Juíza Federal Salise Monteiro Sanchotene, também debruçou-se sobre o tema, assim se manifestando, brilhantemente:

 

"Considerando-se que é medida de exceção – aplicada quando outro mecanismo não for suficiente para satisfazer a sociedade – o processo penal, por obediência constitucional, deverá ser conduzido de forma a, humana e juridicamente, produzir o menor sacrifício ao acusado. Tornar-se sujeito passivo de uma ação penal pode marcar de modo irreversível a vida de uma pessoa. É preciso rememorar a lapidar lição de Ada Pellegrini Grinover, quando diz que (...) o processo não é apenas um instrumento técnico, mas sobretudo ético. Por isso, processualistas penais espanhóis afirmam categoricamente que somente se recebe a denúncia, dando início ao juicio oral, quando há elementos seguros de prova de que o acusado é o provável autor do fato, sob pena de, em assim não procedendo, submeter o réu à chamada pena de banquillo, entendida como o constrangimento desnecessário e desumano de uma pessoa ao estrépito de uma ação penal.

O ordenamento jurídico infraconstitucional não pode permitir abusos que violem princípios consagrados na Carta Magna. Desse modo, constranger uma pessoa a defender-se até o fim de uma ação penal, sabendo-a parte ilegítima, é atentar contra a dignidade tutelada em sede constitucional. Nesse passo, é importante recordar a lição de Jorge Miranda quando afirma que a pessoa é fundamento e fim da sociedade e do Estado, e que a dignidade da pessoa (...) é da pessoa concreta, na sua vida real e quotidiana; não é de um ser ideal e abstracto.

É preciso, pois, tornar efetivos os princípios constitucionais, aplicando-os no processo penal. O processo penal somente tem sentido se assegurar a efetivação da justiça e esta apenas existirá se houver respeito ao indivíduo. O juiz, frise-se mais uma vez, não pode ser omisso diante da violação de um princípio constitucional e deve, numa interpretação sistemática, julgar antecipadamente o processo a fim de impedir que o cidadão, denunciado de forma indevida, passe pelo constrangimento de responder a uma ação penal.

É lapidar, quanto a este tema, a lição de Weber Batista: ‘Para condenar, que se esgotem todas as oportunidades de defesa; mas, para absolver, que se faça tão logo haja certeza plena. O interesse social na punição dos criminosos, um dos dois valores mais essenciais diante dos quais se move o processo, não sofre com a demora se esta tende à certeza da culpa; mas cada dia a mais de inútil coação processual constitui punição injusta do inocente.’ (Julgamento Antecipado da ação penal – ilegitimidade de parte. Revista CEJ/Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários – n.º 10 – Brasília: 2000, p. 24)

 

Nestes termos, opto pelo julgamento antecipado da lide.

No mérito, forçoso é concluir-se pela existência de irregularidades quanto à operatividade da rádio comunitária da Associação de Moradores do Bairro Paraguai, no Município de Aquidabã/SE, porquanto ausente a outorga para funcionamento pelo Poder Concedente – União Federal, através dos órgãos do Ministério das Comunicações -, nos termos da Lei nº 9.612/98, além da responsabilidade do réu, como presidente da Associação e pela instalação dos equipamentos.

Contudo, não se me afigura que ditas irregularidades, advindas da falta de autorização para operação de serviço de radiodifusão, ingressaram na esfera penal, mas, tão-somente, constituíram-se em ilícitos administrativos.

Em que pese a redação da conduta penal descrita no art. 183, da Lei nº 9.472/97, e ora imputada aos réus, não deixar margem a dúvidas: "Desenvolver clandestinamente atividades de telecomunicações", foi a mesma abrandada por diploma legal posterior - Lei nº 9.612/98, que disciplina o Serviço de Radiodifusão Comunitária -, considerando como tais os serviços que operem em baixa potência (máximo de 25W), altura de irradiação não superior a 30m, outorgados a fundações e associações comunitárias, sem fins lucrativos (art. 1º e §§ da Lei 9.612/98).

Do cotejo de toda documentação colacionada, mormente do Laudo Técnico pericial de fls. 32 e 33, e 47, vê-se, claramente, que os equipamentos apreendidos, apesar de possuírem potência de 48W, estando acima do permitido legalmente, que é de 25W, operavam em faixa de transmissão de 94,9MHz, estando dentro daquela destinada à radiodifusão (76 a 108MHZ).

Inocorreu, na espécie, perigo concreto à aeronavegação, navegação ou similares, mas, somente, possibilidade de interferência em rádios FM em funcionamento no Estado, hipótese também afastada pelos peritos, os quais informam inexistir outra rádio FM, licenciada pela ANATEL, operando na mesma frequência.

Efetivamente, a ausência de autorização para funcionamento, observadas as singularidades do caso, enseja apenas a sanção administrativa, o que já ocorreu com a interrupção dos serviços e perda dos equipamentos.

Com isso, aliado às provas colhidas na fase pré-processual e em Juízo (fls. 37/38, 199), em que restou configurado o objetivo de atendimento à comunidade local e sem fins lucrativos, colhe-se, induvidosamente, não se coadunar tal conduta, atribuída aos acusados, ao quanto previsto no tipo penal do art. 183 da Lei n.º 9.472/97.

Embora o dolo, como elemento subjetivo do delito, seja genérico, o que emerge dos autos, é que tal não existiu, face ao direcionamento dado aos programas veiculados, voltados para a integração da comunidade e o bem estar social.

No particular, os Tribunais, como oportunamente colocado pelo Representante do Ministério Público Federal em outras ações penais análogas, já vêem aceitando a idéia de descriminalização, quando a conduta em apreço estiver resvestida das particularidades já destacadas, conforme se vê das decisões abaixo:

 

EMENTA: Penal. Recurso "ex officio". Habeas Corpus preventivo. Cabimento. Rádio Comunitaria. Art. 70 da Lei 4.117/62. Atipicidade. Inocorrência de dano ou ofensa aos interesses tutelados pelo Código Brasileiro de Telecomunicações. Improvimento da remesssa oficial.

1.- Existente fundado receio de constrangimento ilegal consistente em ameaça de indiciamento em inquérito policial, fechamento de Rádio Comunitária e apreensão dos seus transmissores, é de se admitir o caráter preventivo do "writ".

2.- Não se tipifica o crime previsto no art. 70 da Lei 4117/62, quando ausente potencialidade lesiva em transmissões de rádio comunitária, de diminuta potência e pouco alcance.

3.- Vedação legal à restrição ao direito de expressão e valorização das manifestações culturais, a justificarem o "mandamus". Aplicação dos arts. 5, inciso IX e 215, "caput", da Constituição Federal.

4.- Manutenção da r. decisão concessiva da ordem.

(Acórdão na RCCR nº. 03022040-0-SP/2ª. Turma/TRF 3ª. Região/ Rel.: Juíza Sylvia Steiner/ DJ-Data: 05-06-96/Pg: 038187).

 

EMENTA: Penal. Instalar ou operar aparelho de telecomunicações sem autorização. A instalação ou operação de rádio comunitária com potência de 10 watts não configura o crime do art. 70, Lei-4117/62, porque não é típica telecomunicação senão radiodifusão, como, pela reduzida potência, não causa prejuízo às telecomunicações. Ordem deferida para trancar o Inquérito respectivo.

(HC nº. 0413686-2-PR/1ª. Turma/TRF 4ª. Região/Rel.: Juiz Volkmer de Castilho/DJ-Data: 25-06-97/Pg: 048428).

 

EMENTA: Habeas Corpus. Trancamento de ação penal. Rádio Comunitária. Ausência de permissão. Liberdade de expressão – Constituição Federal e Tratado Internacional, inexistência de dolo, desconfiguração do crime.

- Convicto o cidadão da licitude de sua conduta ante a liberdade de expressão garantida pela Constituição Federal e por Tratado Internacional, podendo praticá-la com o uso de equipamentos de rádio e comunicação de baixa potência, ausente está o dolo, desconfigurando-se a prática de crime.

- Distingue-se a questão do tipo penal, tido por não configurado, da matéria cível-administrativa, concernente à possibilidade de controle dos equipamentos.

- Ordem de Habeas Corpus em parte concedida, apenas para trancar a ação penal, não para determinar a devolução dos equipamentos, nem para autorizar o funcionamento da emissora.

(HC nº. 00500677-6-PB/1ª. Turma/TRF 5ª. Região/Rel.: Juiz Hugo Machado/DJ-Data: 13-06-97/Pg: 043653).

 

Destarte, no caso em exame, demonstrado inexistir possibilidade de dano ao bem juridicamente protegido pelas normas legais que regem a matéria, há que se afastar o dolo, como elemento subjetivo do delito, assumindo caráter de ilícito administrativo.

Por todos esses fundamentos, absolvo os réus da acusação, com base no art. 386, III, do CPP.

 

P. R. I.

 

Aracaju, 06 de julho de 2000.

 

 

Ricardo César Mandarino Barretto

Juiz Federal - 1ª. Vara