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PODER JUDICIÁRIO - JUSTIÇA FEDERAL
Seção Judiciária do Estado de Sergipe

 

 

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Processo n.º 2000.85.00.2817-8- Classe 05026 - 1ª Vara.

Ação: Popular.

Autor(a): Antonio Samarone de Santana

Ré: União Federal

Juiz Federal: Ricardo César Mandarino Barretto.

 

 

Constitucional. Ação popular contra a cobrança de taxa de inscrição ao Exame Nacional do Ensino Médio. Natureza jurídica de preço público.

A garantia fundamental do ensino fundamental e médio constitui um bem cívico e cultural da nação, não podendo ser lesada pela cobrança da taxa de inscrição ao ENEM, quando nada em relação aos alunos provenientes de escola pública.

Ação procedente em parte.

 

 

 

SENTENÇA:

Vistos, etc...

Antônio Samarone de Santana, qualificado na inicial de fl. 02, propôs, em face da União Federal, a presente ação popular, objetivando a invalidação da taxa de inscrição instituída em relação ao ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio, com vistas a garantir acesso gratuito aos candidatos que, atendendo aos demais requisitos editalícios e afirmando sua carência, concluíram ou estão concluindo o curso de 2º grau em instituição pública, ou declarem, na forma prevista no art. 1º, da Lei 7.115/83, não poder arcar com o custo da taxa de inscrição sem comprometer seu próprio sustento, garantindo-se-lhes um prazo mínimo de cinco dias úteis para efetuarem suas inscrições, ainda que vencido o prazo oficial para tanto.

Segundo suas palavras, a criação do referido Exame teria sido operada mediante a Portaria nº 438/1998, do Ministro de Estado da Educação e do Desporto, a qual também estabelecera, sem amparo legal, a taxa em foco.

Prejudicados estariam, com sua existência, a moralidade administrativa, o direito à igualdade e o princípio da legalidade tributária, panorama que se agrava pela circunstância de o ENEM constituir componente essencial para ingresso no ensino superior no país, erigindo verdadeiro óbice aos estudantes de classe econômica mais baixa.

Mesmo não sendo aparentemente alto o valor cobrado, em virtude das condições sociais do país, é de se vislumbrar, na mencionada exigência, uma taxa de exclusão social.

Trazendo à colação numerosas lições doutrinárias e jurisprudenciais, discorre sobre o cabimento da ação popular, para enxergar violados diversos preceitos insertos na CF/88, condizentes desde o enunciado dos objetivos fundamentais até os primados específicos que regem, no Texto Magno, o princípio de acessibilidade ao ensino.

Explana sobre a concessão de liminar e, finalizando, junta os documentos de fls. 25 a 106.

Na fl. 107, o MM. Juiz Vladimir Carvalho indeferiu a liminar.

Citada, a União Federal contesta, ventilando, preliminarmente, a perda do objeto e ausência de pressuposto processual elencado no art. 6º, da Lei 4.717/65.

No mérito, refuta a pretensão autoral, aduzindo estar assegurada, pela Constituição Federal, apenas a gratuidade do ensino fundamental e médio, enquanto a taxa versada nos autos foi instituída com relação a um exame de seleção facultativo.

Ademais, dirigindo-se o ENEM àqueles que já concluíram o ensino médio, não haveria infringência ao disposto no art. 206, I, da Carta Magna, porquanto sua proteção só abrange quem ainda não concluiu o nível escolar sobredito.

Aponta, na Lei 9.394/96, as bases do aludido exame, afirmando representar a cobrança, na verdade, um estímulo ao maior empenho daqueles que participam do exame.

Negando caráter tributário à exigência, confere-lhe natureza de preço público para concluir, na ausência de norma isentiva, pela sua legalidade.

Embora intimado, o autor não se manifestou.

Oferecendo parecer, o Ministério Público Federal opina pela procedência do pedido.

 

É o relatório.

 

Examino, inicialmente, o exame da preliminar de perda do objeto levantada pela União, uma vez que as inscrições para o ENEM encerrerar-se-iam em 23.06.2000.

De fato, para a concessão da liminar, houve perda do objeto, relativamente ao exercício de 2000.

Sucede, no entanto, que o pedido final da ação é o reconhecimento da inconstitucionalidade do art. 5º, § 1º, da Portaria 438/98, que prevê o pagamento anual da denominada taxa de inscrição, daí porque não há falar em perda do objeto. A ação, se procedente, terá efetividade para o futuro.

Rejeito a preliminar.

Cumpre, ainda, o exame da possibilidade da ação popular, com vista à inconstitucionalidade da Portaria 438/98, em face à regra do art. 5º, inciso LXXIII. Penso que sim.

O autor da ação é eleitor, com a qualificação maior de agente político, eis que ocupa o cargo de vereador desta capital e a ré União Federal é a pessoa jurídica emissora do ato atacado, tido como lesivo ao patrimônio público.

Por patrimônio público não se pode entender apenas os bens materiais do Estado. Os valores culturais de uma nação compõe o seu patrimônio público.

Ora, se o autor entende que a Portaria atacada dificulta o acesso do estudante pobre ao ensino superior, sendo verdadeiro esse entendimento, a norma questionada estaria a ofender o patrimônio público do Estado, isto é, o direito cívico da comunidade carente, de acesso ao ensino superior.

Hely Lopes Meirelles enumera brilhantemente os requisitos da ação popular, sendo o primeiro, a condição de eleitor do autor da ação, o segundo a ilegalidade ou ilegitimidade do ato a invalidar e o terceiro requisito a lesividade ao patrimônio público, definindo:

 

"Na conceituação atual, lesivo é todo ato ou omissão administrativa que desfalca o erário ou prejudica a Administração, assim como o que ofende bens ou valores artísticos, cívicos, culturais, ambientais ou históricos da comunidade. E essa lesão tanto pode ser efetiva quanto legalmente presumida, visto que a Lei regulamentar estabelece casos de presunção de lesividade (art. 4º), para os quais basta a prova do ato naquelas circunstâncias, para considerar-se lesivo e nulo de pleno direito."

 

Tenho, pois, como cabível, a ação popular para a hipótese dos autos.

No mérito, cumpre examinar-se, de logo, a inconstitucionalidade da cobrança, em face a norma constitucional do art. 150, inciso I.

Na verdade, de tributo, mais especificamente, de taxa não se cuida, tratando-se, o que se denomina "taxa de inscrição", de preço público.

Sobre o conceito de taxa e preço, em face da similitude decorrente da contra-prestação do serviço, a doutrina tem sido pródiga na sua conceituação.

A partir de Seligman, que se baseia na natureza das relações entre o Estado e o particular, o elemento essencial de distinção consiste na circunstância de ser ou não o serviço institucional, isto é, poder ou não ser cometido ao particular.

A distinção de Luiz Emygdio F. da Rosa Júnior, com base igualmente na doutrina e na jurisprudência, parece-me a mais completa ao nosso sistema atual. Vejamos.

 

"Entendemos que, na realidade, preço e taxa não se confundem pelas seguintes razões: a) o preço decorre de uma atividade desempenhada pelo estado como se fosse particular, sem estar investido de sua soberania, enquanto a taxa, por ser tributo, decorre de exercício do poder de polícia ou da prestação de um serviço público ou desempenho de uma atividade em que o Estado age investido de sua soberania; b) a taxa é uma receita derivada, obrigatória, de direito público, enquanto o preço é uma receita originária, contratual, de direito privado; c) a taxa decorre do desempenho de uma atividade que não pode, por sua natureza, ser transferida ao particular, enquanto o preço se origina do desempenho de uma atividade que pode ser cometida ao particular; d) a taxa provém do desempenho de uma atividade na qual prevalece o interesse público, enquanto o preço emana de uma atividade na qual prepondera o interesse particular; e) a taxa decorre da lei e o preço de um acordo de vontades, pelo que o particular não pode ser constrangido a pagá-lo se não utilizar-se da atividade estatal; f) no preço, por ter natureza contratual, há possibilidade de desfazimento do acordo, o que não ocorre com a taxa, que decorre de lei; g) o poder de polícia pode ensejar a cobrança de taxa, mas não de preço; h) a taxa visa a cobrir o custo do serviço, enquanto no preço existe o fim de lucro; i) a taxa remunera serviço público não-essencial; j) o preço não comporta extrafiscalidade, o que pode ocorrer com a taxa.

A importância de se saber se uma dada receita é taxa ou preço público refere-se a maior ou menor liberdade na sua instituição e percepção pelo poder público. Assim, se a receita tem natureza tributária o Estado estará sujeito a todas as limitações constitucionais ao poder de tributar, enquanto se a receita tiver natureza contratual, o poder estatal terá maior liberdade no seu manejo."

 

A cobrança instituída pela Portaria 438 constitui preço público que, embora não vise lucro, destina-se a fazer face às despesas com a realização do exame.

Cuidando-se, pois, de preço público, inexistem as apontadas inconstitucionalidades relativas às limitações ao poder de tributar.

Sob outro enfoque, tenho que a cobrança da denominada taxa de inscrição para o ENEM compromete a disposição do art. 3º, da Constituição Federal, e agride, induvidosamente, o princípio da igualdade do art. 5º, e os artigos 206 e 208, inciso V, pelo menos com relação aos estudantes matriculados nas escolas públicas. Explico.

A interpretação da disposição do art. 208, inciso I e II, não pode ser literal, mormente que se cuida da Constituição de 1988, prenhe de princípios que, hoje, a doutrina não aceita mais com os efeitos de normas programáticas clássicas.

Autores há que chegam a afirmar que as disposições programáticas são de eficácia plena e imediata. Penso que o são, quando, no próprio Texto constitucional podem ser cotejadas com normas objetivas, de induvidosa aplicação plena.

Assim é que, se o art. 208 assegura o direito ao ensino gratuito fundamental e a progressiva universalização do ensino médio gratuito, constitui norma de eficácia plena. Em combinação com a regra de princípios do art. 3º, conferiu a este efetividade, no que pertine à educação.

O art. 3º, da Constituição estabelece os objetivos fundamentais da República, consistente numa sociedade livre, justa e solidária; na garantia do desenvolvimento nacional; na erradicação da pobreza, marginalidade e redução das desigualdades sociais e regionais e, na promoção do bem estar de todos.

Nenhum desses objetivos será alcançado, sem progresso educacional. Dir-se-á, mas é norma programática. Respondo, para a educação, não, porque a regra do art. 208 é de eficácia plena, sob o manto dos princípios do art. 3º, contaminando-lhe também de eficácia plena, numa simbiose perfeita.

Por outro lado, o § 1º, do art. 5º, consagrou as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais como de aplicação imediata.

Sabe-se que a efetividade encontra obstáculos, porque, inúmeras vezes, o texto constitucional remete à lei a efetividade de algumas normas consagradoras de princípios.

José Afonso da Silva aborda o tema, com cautela, afirmando que:

 

"A eficácia e aplicabilidade das normas que contém os direitos fundamentais dependem muito de seu enunciado, pois se trata de assunto que está em função do Direito positivo. A constituição é expressa sobre o assunto, quanto estatui que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Mas certo é que isso não resolve todas as questões, porque a Constituição mesma faz depender de legislação ulterior a aplicabilidade de algumas normas definidoras de direitos sociais enquadrados dentre os fundamentais. Por regra, as normas que consubstanciam os direitos fundamentais democráticos e individuais são de eficácia contida e aplicação imediata, enquanto as que definem os direitos econômicos e sociais tendem a sê-lo também na Constituição vigente, mas algumas, especialmente as que mencionam uma lei integradora, são de eficácia limitada, de princípios programáticos e de aplicação indireta, mas são tão jurídicas como as outras e exercem relevante função, porque, quanto mais se aperfeiçoam e adquirem eficácia mais ampla, mais se tornam garantia da democracia e do efetivo exercício dos demais direitos fundamentais."

 

 

No caso dos autos, no entanto, os princípios elencados no art. 3º, são de aplicação imediata, no particular do ensino, da educação, por força quando nada, das outras regras referidas do art. 208.

Pois bem, o Exame Nacional de Ensino Médio – ENEM, foi instituído com diversos objetivos, todos eles especificados no art. 1º da Portaria 438/98, a saber:

 

"Art. 1º Instituir o Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM, como procedimento de avaliação do desempenho do aluno, tendo por objetivos:

I – conferir ao cidadão parâmetro para auto-avaliação, com vistas à continuidade de sua formação e à sua inserção no mercado de trabalho;

II – criar referência nacional para os egressos de qualquer das modalidades do ensino médio;

III – fornecer subsídios às diferentes modalidades de acesso à educação superior;

IV – constituir-se em modalidade de acesso a cursos profissionalizantes pós-médio."

 

 

Dentre esses objetivos, destaco o do inciso IV, que constitui em modalidade de acesso a cursos profissionalizantes pós-médio.

Um dos objetivos do curso médio é possibilitar acesso do indivíduo à Universidade, como forma de aperfeiçoamento da cidadania, no espírito do art. 3º.

É verdade que o art. 5º, da Portaria em comento, estabelece que a inscrição é voluntária, facultativa. Assim o fazendo, está a impor a cobrança dessa inscrição de quem não pode pagar, mesmo que outras opções, como vestibular tradicional, existam para acessar a Universidade. As regras jurídicas não podem limitar as opções, afastando, dos mais carentes, uma delas.

Se assim se admitisse, ter-se-ia por quebrada a regra do princípio constitucional da igualdade que, desde a doutrina de Rui Barbosa, carateriza-se por tratar desigualmente os desiguais.

Desse modo, penso que o Ministério da Educação poderia instituir a taxa para fazer face às despesas com o ENEM, mas jamais cobrar de quem não tem condições de pagar. A cobrança não pode ser feita de alunos provenientes de escola pública e alguns outros que, individualmente, demonstrem não poderem arcar com esse ônus.

Não se trata, aqui, de impor-se, judicialmente, uma alteração normativa, invadindo-se a esfera de competência do Poder Executivo. Cuida-se, apenas, de adequação às normas constitucionais invocadas, o que é possível em ação popular, baseado em regra elementar de que toda norma inconstitucional fere o princípio da moralidade.

É fato público, hoje, em nosso país, a circunstância de apenas os pobres estudarem em escola pública, não merecendo esse fato da nossa vida social maiores considerações.

Isto posto, julgo procedente parcialmente a ação para afastar a exigência do art. 5º § 1º, da Portaria 438/98, com relação aos alunos provenientes de escola pública, assegurando-lhes o direito de se inscreverem no ENEM, independentemente do pagamento de qualquer taxa de inscrição ou outra denominação que venha a ter.

Condeno a ré em honorários de advogado que arbitro em R$ 500,00 (quinhentos reais).

Sentença sujeita a reexame.

 

P. R. I.

 

Aracaju, 31 de maio de 2001.

 

 

Ricardo César Mandarino Barretto

Juiz Federal