small_brasao.jpg (4785 bytes)
PODER JUDICIÁRIO - JUSTIÇA FEDERAL
Seção Judiciária do Estado de Sergipe

wpe20.jpg (2542 bytes)

wpe23.jpg (1748 bytes)

 

Processo nº. 2000.85.00.4711-2 – Classe 01000 - 1ª. Vara.

Ação: Ordinária.

Autor: João Barbosa Trindade e Outro.

Réu: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA.

Juiz: Ricardo César Mandarino Barretto.

 

Agrário. Administrativo. Ação de nulidade de revisão cadastral de imóvel. Junção de vários imóveis como se fossem um só. Ação procedente.

 

SENTENÇA:

                        Vistos etc...

                        João Trindade Barbosa e Maria Genilda Silva Neves, qualificados na inicial de fls. 02, ingressam com a presente ação de conhecimento, visando invalidar revisão cadastral efetuada pelo INCRA, condenando-se-lhe, de conseqüência, a manter a classificação dos imóveis indicados na inicial como “média propriedade produtiva” .

Da inicial, extrai-se o seguinte:

Vivendo em união estável, possuem os demandantes cinco imóveis rurais com títulos dominiais distintos, mas cuja contiguidade, no entanto, leva-os a formar, enquanto agrupados, a “Fazenda Grutão”, localizada no município de Riachão do Dantas/SE.

O requerido, infringindo os mandamentos das leis nº 4.504/64 e nº 5.868/72, promoveu revisão ex officio do cadastro referente ao citado conjunto, classificando-o como média propriedade produtiva sem resguardar o mandamento inserto no art. 5º, XXXIII, da CF/88.

Não se considerou a imunidade consignada no art. 7º, da Lei 8.629/93 – com a redação das MP’s 1774-21/99 e 1901-30/99, pois, quando da vistoria, a propriedade encontrava-se em fase preliminar de implementação de projeto técnico, sob o aval do BNB.

    Da mesma forma, ignorou-se a imunidade estabelecida no art. 2º da mesma lei – segundo alterações da MP 2027-40, uma vez que o imóvel havia sido esbulhado por duas vezes em 1999 e uma outra em 2000.

Finalizando, historiam os demandantes as anteriores classificações cadastrais, sempre considerando a prefalada fazenda como produtiva, e discorrem acerca dos requisitos autorizadores da antecipação de tutela.

Trouxeram os documentos de fls. 13 a 213.

Indeferi o pleito antecipativo nas fls. 214.

Citado, o INCRA contesta, aduzindo preliminar pela inadequação do procedimento.

Após argumentar pela impertinência da antecipação de tutela, chama a atenção para o fato de não ter sido postulada a exclusão da propriedade do processo expropriatório, cingindo-se a lide quanto à invalidação da classificação cadastral.

A seu ver, a possibilidade de revisão cadastral de ofício está calcada no poder de polícia especialmente conferido pela Lei 8.629/93, cujos propósitos consistem em dar efetividade  a diversos mandamentos constitucionais.

Nesse teor de idéias, assegura ter sido observado o direito ao contraditório e à ampla defesa.

Ademais, no seu entender, as normas colacionadas pelos demandantes, restritivas da possibilidade da revisão de ofício, condizem apenas à arrecadação e fiscalização do ITR, tributo pelo qual não mais responde.

Em igual tom, não estariam configuradas as imunidades aventadas na inicial, porque ausente o preenchimento dos requisitos legais exigidos para tanto.

Arremata, asseverando não representar empecilho à alteração da classificação cadastral o fato de o imóvel, nos anos anteriores, haver sido considerado produtivo.

Anexou documentos.

Os autores falaram sobre a defesa.

Nas fls. 393, encontra-se petição do INCRA, tratando de execução de honorários em cautelar intentada pelos postulantes.

                        É o relatório.

Verificada a hipótese do art. 330, I, do CPC, passo ao julgamento antecipado da lide.

De início, examino a matéria processual.

A opção pelo rito ordinário não traz nenhum prejuízo à defesa. Ao contrário, permite-lhe maior prazo para apresentar resposta e maior amplitude quanto aos meios de prova.

Não desconhece este Juízo que a disciplina de rito é de ordem pública e, portanto, indisponível.

No entanto, tais caracteres, dentro de uma interpretação sistemática do direito processual civil, hão de ser coadunados com o disposto no art. 125, II, do  CPC, ordenança pela qual o juiz deve “velar pela rápida solução do litígio”.

Determinar a mudança de procedimento, no presente feito, contrapor-se-ia ao verdadeiro sentido da lei, eis que não traria nenhum benefício a qualquer das partes e protelaria o desfecho da lide.

Rejeito, assim, a preliminar.

No mérito, a intenção dos demandantes é, em suma, que se invalide revisão cadastral promovida pelo INCRA, com o fito de manter a anterior classificação de “imóvel”[1] rural de sua propriedade, até então julgado produtivo.

O procedimento de reenquadramento empreendido pelo réu é regido pelo direito administrativo.

Desse modo, à semelhança do ato complexo, viciado um de seus atos componentes, o defeito se estende aos que lhe são posteriores, quando entre si subordinados mediante uma relação de dependência lógica. Além disso, caso acoimado de nulidade absoluta, o Judiciário estará habilitado a pronunciá-la independentemente de provocação[2].

Postas essas premissas, ingresso na solução da causa.

A desapropriação, sob pena de malferir o direito à propriedade, é de ser admitida apenas diante da verificação, apoiada em critérios objetivos, de seus pressupostos autorizadores e nos limites de sua finalidade, itens de sede constitucional. Ao reverso, tão importante instituto correrá o risco de ser manipulado com abuso de poder.

Por seu turno, a “Fazenda Grutão”, objeto da avaliação feita pelo demandado, não existe juridicamente. Sempre foi composta, segundo o teor dos autos, por cinco propriedades distintas, porém contíguas, nominadas fazendas “Roça de Dentro”, “Grutão”, “Grutão da Mata”, “Lagoa da Cruz” e “Grutão”, dispondo, cada qual, de registro imobiliário individual (fls. 15 a 30). Tal fato, muito anterior à inspeção do imóvel, era conhecido pelo INCRA (fls. 241).

Porém, quando do levantamento de dados aqui discutido, contemplaram-se  aqueles imóveis como um todo, como se fossem, realmente, um único imóvel rural.

Os índices de produtividade, por óbvio, foram calculados com base nessa falsa imagem e, de conseqüência, falta parâmetro prestante a enquadrar aquelas fazendas como improdutivas, requisito básico para habilitar a transferência impositiva de domínio.

A razão disso repousa na circunstância de ser impossível afirmar qual ou quais das propriedades atendem ou não sua função social, expondo-se, a partir de tão equivocada conduta, áreas possivelmente produtivas à expropriação – sanção para fins de reforma agrária.

Explica-se. Os níveis de aproveitamento da terra a merecer cotejo são proporcionais à extensão e ao potencial da área do imóvel, níveis esses que variarão, inevitavelmente, de um espaço de 100 hectares em relação a outro de 1000, por exemplo.

Nesse passo, é factível que uma ou mais das fazendas dos demandantes, vistas isoladamente, sejam produtivas, como também o é que nenhuma seja. Mas, em virtude da indevida postura do INCRA, de nada se pode ter certeza. Havendo dúvida, descabe a pecha de improdutividade, porquanto a constatação, consoante dito acima, deverá pautar-se por critérios objetivos, seguros.

A Suprema Corte do País, no tema da desapropriação - sanção, dá tanta ênfase à necessidade de se avaliarem os imóveis rurais de acordo com sua configuração jurídica que chegou a invalidar Decretos expropriatórios. Vejamos:

 

DESAPROPRIAÇÃO - REFORMA AGRÁRIA.

A ocorrência do desmembramento do imóvel em data anterior ao decreto de declaração de interesse social para fins de reforma agrária, com a inscrição no registro de imóveis, inviabiliza a desapropriação, pouco importando que a vistoria haja ocorrido em data anterior.

(STF, MS nº 23194 – PR, Rel. Min. Marco Aurélio. Decisão de 08.11.2000)

 

DESAPROPRIAÇÃO - REFORMA AGRÁRIA.

Tanto na notificação relativa à vistoria quanto no decreto desapropriatório, deve-se levar em conta a real situação do imóvel. Procedidos em data posterior à divisão do bem, formalizada mediante escrituras públicas registradas, no cartório competente, com matrículas diversas, descabe agasalhar os atos desapropriatórios, já que não considerada essa realidade.

(STF, MS nº 23222 – PB, Rel.  Min. Marco Aurélio. Decisão de 09.11.2000)

 

O STJ vem adotando o mesmo entendimento:

 

DESAPROPRIAÇÃO. REFORMA AGRÁRIA. IMÒVEIS HAVIDOS POR HERANÇA, CONSUBSTANCIADORES DE MÉDIAS E PEQUENAS PROPRIEDADE. REGISTRO IMOBILIÁRIO. EFICÁCIA.

I - A pequena e média propriedades rurais, ainda que improdutivas, não estão sujeitas ao poder expropriatório da união federal, para fins de reforma agrária, "ex vi" do art. 185, I, da CF/1988.

II - A divisão do imóvel rural, por constituir direito assegurado ao condomínio pelo ordenamento positivo, pode ocorrer mesmo quando iniciada a fase administrativa do procedimento expropriatório. se, da divisão do imóvel, resultarem glebas que, objeto de matricula e registros próprios, venham qualificar-se como media e pequenas propriedades rurais, impossível será a desapropriação prevista no art. 184 da Lei Maior. precedente do excelso pretório. no caso, ademais, o procedimento expropriatório foi instaurado após o registro da partilha no cartório competente, com posterior abertura de matricula especifica para cada quinhão hereditário, fato de que o INCRA tinha conhecimento, tanto que cadastrou, cada um dos terrenos, com suas áreas e respectivos proprietários, qualificando-os como media propriedade rural, minifúndio e pequena propriedade rural produtiva.

III - No caso, a ameaça de violência ou abuso de poder era tão gritante que, tomando conhecimento desta impetração, a digna autoridade impetrada, nas suas informações, reconheceu expressamente o direito líquido e certo de os impetrantes não terem os seus imóveis expropriados.

IV - Mandado de segurança concedido.

(MS-4298/DF; Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, DJ de 29.10.1996).

 

Fazendo incidir o procedimento sobre as propriedades de forma globalizada, unificando-as, o INCRA divorciou-se da realidade patrimonial dos demandantes, criando uma ficção arbitrária.

Desapropriar é, por próprio conceito, transferir propriedade. Propriedade é uma noção jurídica, não fática. O Estado ou seus delegados não podem trespassar semelhante noção ao qualificar um bem para fins expropiatórios, pois, na hipótese contrária, desafiariam os limites válidos de sua atuação.

 Nesse contexto, onde existem várias propriedades, não se pode dizer “uma propriedade” sem incorrer em dado falso. Com efeito, não existe a propriedade “Fazenda Grutão”. Existem cinco fazendas, contíguas, com diferentes títulos dominiais, apenas conhecidas popularmente com aquele nome.

O suposto imóvel sobre o qual recaiu o levantamento feito pelo INCRA corresponderia ao objeto do respectivo procedimento. Representa, pois, pressuposto de existência de todos os atos administrativos praticados na referida avaliação, conforme se depreende da insuperável lição de Celso Antônio Bandeira de Mello[3]:

 

“Objeto é aquilo sobre que o ato dispõe. Não pode haver ato sem que exista algo a que a ele seja reportado. É certo que, se o conteúdo do ato fala sobre algo, é porque este algo constitui-se em realidade que com ele não se confunde e, de outro lado, que o objeto não é um elemento do ato, pois não o integra.

(...) Sem objeto – material e juridicamente possível – não pode surgir ato jurídico algum, seja ele administrativo ou de qualquer tipologia. Um ato, isto é, um conteúdo exteriorizado, que incide sobre um objeto inexistente é um ato inexistente, um não-ato.”    

 

O conteúdo do mencionado procedimento de revisão atingiu a “Fazenda Grutão”, seu objeto, classificando-a como improdutiva (pg. 262 a 264). Todavia, para fins de direito – e de existência válida, destarte, não há “Fazenda Grutão”. Em vista disso, não há objeto, nem ato emanado do INCRA ao qual se possa emprestar algum efeito válido.

A existência de distintas propriedades, ressalto novamente, é muito anterior à qualquer medida preparatória de processo expropriatório, remontando às datas de aquisição, pelos autores, daquelas terras.

Fosse pouco o quanto dito, digna de relevo, igualmente, a invasão dos imóveis, no ano anterior à vistoria, por sem - terras, que, desde então, parecem ter permanecido ao redor dos mesmos (fls. 248, item IX).

Ora, regra geral, o aproveitamento atual de um imóvel rural é reflexo do labor executado há um ano ou mais.

No caso dos postulantes, ora turbados, ora esbulhados em sua posse, é razoável crer que um deficiente nível de produtividade tenha sido senão causado, ao menos agravado, por conta da descrita conjuntura.

Na definitiva interpretação do STF, contextos assim exoneram os proprietários da responsabilidade por um eventual mal aproveitamento do bem. A esse respeito, veja-se trecho do voto do Min. Marco Aurélio, ao relatar o MS nº 23222 – PB, outrora destacado:

Em 20 de novembro de 1997, dera-se a invasão do imóvel por cerca de vinte e três famílias, vindo o Juízo a determinar a reintegração na posse em 11 de dezembro de 1997 (folhas. 99 e 105 a 107). Portanto, os levantamentos foram efetuados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA após a ocupação do imóvel pelos invasores, não se podendo atribuir, assim, aos Impetrantes a omissão quanto à produtividade.”

 

Traduzindo-se tal aspecto em um antecedente fático com implicações diretas na classificação de propriedades como produtivas ou não, evidencia-se a necessidade de ser ponderado, fundamentadamente, quando da edição dos atos administrativos ligados a tal matéria. Ignorando-o, ou ignorando seus efeitos, dissocia-se a Administração Pública das raias materiais ensejadoras dos atos de aferição e de classificação.

Ou seja, tratando-se, como se trata, de dados da realidade anteriores e condicionantes da produção de um ato administrativo, produzi-lo desvinculado de tais dados significa produzir um ato de motivos ineptos.

No caso dos requerentes, se a invasão não se erigia em imunidade à vistoria, erigir-se-ia, no mínimo, em fator a ser pesado quando da aferição da produtividade dos imóveis, porque enfileirada ao lado dos pressupostos fáticos influentes na avaliação da racional e adequada utilização da terra. Esclareço: não basta indicar a ocorrência de tal evento, sendo imperioso, além disso, dimensionar-lhe os efeitos.

Emergem, na presente ação, dois vícios insanáveis, reconhecíveis ex officio, em virtude das normas pertinentes ao regime jurídico administrativo. Referentes ao objeto e aos motivos do ato, respectivamente, foram indicados na inicial, embora os demandantes tenham-lhes colocado sob outra roupagem.

Sobredita situação, entrementes, não embaraçam sejam pronunciados aqueles defeitos, porque, diante da causa de pedir, representam mera solução jurídica aplicável, não vinculando o órgão julgador. Aplica-se, nesse panorama, o brocardo  “narra-me o fato e te darei o direito”.

Inobstante, mesmo defendendo-se a tese de integrarem eles a causa petendi, a falta de argüição específica em nada inibe seu reconhecimento, porquanto dão vezo à inexistência jurídica e à nulidade absoluta do procedimento de revisão encetado pelo réu em relação aos imóveis dos demandantes, conseqüências que tornam despicienda a provocação explícita do Judiciário .

 A manutenção dos prelafados bens como propriedades produtivas é cabente enquanto mera conseqüência da invalidação da revisão cadastral, pois, ante a ausência de efeitos advindos de atos nulos ou inexistentes, retorna-se ao status quo ante. O INCRA, deixe-se patenteado, não fica impedido de efetuar novo procedimento, de acordo com os ditames legais e constitucionais, podendo, no futuro, vir a classificá-los como improdutivos, uma vez estampadas as condições necessárias para tanto.

Isto posto, julgo procedente os pedidos, para invalidar o procedimento de revisão cadastral noticiado nos autos e condenar o réu a manter a classificação dos imóveis que compõem a “Fazenda Grutão” como “média propriedade produtiva”, com as ressalvas estabelecidas acima.

Defiro a antecipação de tutela, para considerar os imóveis objeto da ação como produtivos, devendo réu proceder à retificação.

Condeno o réu nas custas e honorários, estes arbitrados em 10% sobre o valor da causa e parcialmente compensados com as verbas advocatícias deferidas no Processo de nº 2000.85.00.4711-2, caso não invertida a sucumbência em grau de recurso.

Sujeita a reexame necessário.

                        P. R. I.

Aracaju, 22 de agosto de 2001.

 

Ricardo César Mandarino Barretto

Juiz Federal - 1ª Vara



[1] Na verdade,  cinco imóveis.

[2] Nesse sentido, cf. Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo. 12ª ed. pp. 381 e 413. São Paulo: Malheiros, 2000.

[3] Idem. pg. 338.