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PODER JUDICIÁRIO - JUSTIÇA FEDERAL
Seção Judiciária do Estado de Sergipe

 

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Processo nº 2004.85.00.4725-7 - Classe 5023 – 3ª Vara

Ação: Ação Civil Pública

Partes:

     Autor: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

     Ré   : UNIÃO FEDERAL

 

 

ADMINISTRATIVO. CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CAMPANHA DO DESARMAMENTO. DESTRUIÇÃO DE ARMAS E MUNIÇÕES SERVÍVEIS E DE VALOR HISTÓRICO-CULTURAL E ARTÍSTICO. OFENSA A PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS. LESÃO AO PATRIMÔNIO PÚBLICO E COLETIVO. PROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS AUTORAIS. PROIBIÇÃO À UNIÃO FEDERAL DE DESTRUIR ARMAS, ACESSÓRIOS E MUNIÇÕES QUE POSSAM SER UTILIZADOS PELO SERVIÇO PÚBLICO OU QUE TENHAM VALOR HISTÓRICO-CULTURAL OU ARTÍSTICO. ABRAN-GÊNCIA NACIONAL DA SENTENÇA.

 

 

 

 

 

Sentença:

 

 

 

Vistos etc.

 

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL ajuizou AÇÃO CIVIL PÚBLICA, em face da UNIÃO FEDERAL, alegando que a ré está realizando campanha de desarmamento, através do Departamento de Polícia Federal, e, nesse intuito, vem recolhendo armas da população em troca de indenização, fixada em R$ 100,00 (cem reais) por revólver arrecadado, podendo ser maior com relação a armamentos mais potentes, que, posteriormente, são encaminhadas, por intermédio do Ministério da Justiça, ao Comando do Exército para serem destruídas, à luz do Estatuto do Desarmamento – Lei nº 10.826/2003.

 

Esclareceu que, entre as armas recolhidas, cerca de 90% (noventa por cento) são obsoletas e inservíveis, enquanto o restante apresenta bom estado de conservação, porém o Ministério da Justiça tem interpretado erroneamente o Estatuto do Desarmamento e ordenado a destruição de toda e qualquer arma apreendida, o que caracteriza medida desarrazoada e violadora de preceitos constitucionais.

 

Sustentou que o art. 32 da Lei nº 10.826/2003 não prevê aludida conduta, porquanto impõe que as armas recebidas constem de cadastro específico, bem assim a elaboração de laudo pericial antes da destruição, dando a entender que somente as inservíveis deverão ser destruídas, enfatizando que entendimento contrário conduziria à conclusão da inutilidade do aludido laudo, bastando o cadastro específico para autorização da destruição das armas.

 

Afirmou que a conduta da União Federal vem trazendo prejuízos financeiros injustificados à Administração Pública, pois as armas em bom estado de conservação poderiam ser utilizadas pelas Forças Policiais e pelas Forças Armadas, por obediência aos princípios da primazia do interesse público sobre o particular e da eficiência da Administração Pública, inclusive salvaguardando o patrimônio público em consonância com os arts. 37, § 4º; 70 e seguintes; 129, III, dentre outros da Constituição Federal; à vista da qual a lei em exame se apresentaria eivada de vício, caso determine danos ao Erário.

 

Argumentou que estão presentes os requisitos da medida liminar, quais sejam: o fumus bonis iuris, pelas razões de fato e de direito acima expendidos; e o periculum in mora, pelo fato de que o Departamento de Polícia Federal tem encaminhado ao Comando do Exército as armas apreendidas, para destruição, dia a dia, independentemente do estado de conservação em que se encontrem.

 

Salientou que a decisão proferida por este juízo deverá produzir efeitos erga omnes, em todo o território nacional, em razão da extensão dos danos causados e da própria natureza do objeto da demanda, que não pode ser dividido em tantas partes quantas forem as comarcas deste país, não devendo ser aplicada a regra do art. 16 da Lei de Ação Civil Pública, modificado pela Lei nº 9.494/97, uma vez que este, em confronto com o art. 129, III, da Lei Magna e com o princípio da isonomia, encontra-se eivado de inconstitucionalidade.

 

Requereu, em sede de liminar, que fosse determinado à ré, por intermédio do Excelentíssimo Senhor Ministro da Justiça e do Diretor-Geral do Departamento de Polícia Federal, a não destruição das armas, acessórios e munições, que estiverem em bom estado de conservação, apreendidos durante a campanha de desarmamento, até decisão final neste processo; a citação da requerida para contestar esta ação, no prazo de 15 dias; e a declaração, incidenter tantum, da inconstitucionalidade dos dispositivos atacados, se o Juízo entender necessário, para o deferimento do pedido. Como provimento final, pleiteou que a União Federal se abstenha de destruir armas, acessórios e munições apreendidos durante a referida campanha, em condições de uso, dando a tais materiais destinação no âmbito dos órgãos de segurança pública e das Forças Armadas, a critério destas, priorizando-se a incorporação dos equipamentos ao patrimônio federal.

 

Pugnou, ainda, pela fixação de multa diária pelo eventual descumprimento da liminar ou da sentença, sendo que os valores decorrentes dela devem ser destinados ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos – FDDD, criado pelo Decreto nº 1.306/94, e pela abrangência nacional das decisões provisórias e definitivas exaradas no presente processo.

 

Nas f. 10 e 11, o autor promoveu o aditamento da inicial, dizendo que chegou ao conhecimento do Ministério Público Federal que, no bojo da Campanha de Desarmamento levada a cabo pelo governo federal, estariam sendo destruídas, de maneira injustificada, armas de valor histórico, utilizadas, muitas vezes, em conflitos e movimentos que fazem parte da História do Brasil, postulando, também, a preservação das armas e dos acessórios de valor histórico, com base no art. 216 da Constituição Federal e nas Leis da Ação Popular e da Ação Civil Pública, que tutelam o patrimônio histórico e cultural, requerendo que a ré, por intermédio do Ministério da Justiça e do Departamento de Polícia Federal, abstenha-se de destruí-los, solicitando-se o auxílio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN e de outros órgãos especializados, e que tais equipamentos sejam destinados ao próprio IPHAN e a museus federais, estaduais e municipais cujo acervo seja pertinente.

 

Intimada para se manifestar sobre o pedido de liminar no prazo de 72 (setenta e duas) horas, nos termos do art. 2º da Lei nº 8.437/92, f. 09, a União Federal o fez nas f. 14 a 19, sustentando que a Lei nº 10.826/2003, que estabelece o Estatuto do Desarmamento, é incisiva quanto à destruição das armas apreendidas, encontradas ou recebidas em decorrência da campanha do desarmamento, não permitindo o seu reaproveitamento para qualquer fim, a teor do seu art. 32 e respectivo parágrafo único.

 

Aduziu que a Lei nº 10.826/2003 não permite outra interpretação além da mencionada acima, porquanto surgiu da necessidade de se desarmar a população brasileira, visando a diminuição da violência e a preservação da segurança pública, objetivos que poderiam ser fadados ao fracasso na hipótese de ser acatada a pretensão autoral.

 

Asseverou que para se aferir se andou o Legislador Ordinário de acordo com os princípios constitucionais insertos no art. 37, caput, e parágrafo único, no art. 70 e seguintes, no art. 129, inciso III, e no art. 261, todos da Carta Constitucional se afigura necessário estabelecer que a norma legal não pode se dissociar da sua ratio legis, posto que encontra nesta os parâmetros necessários à implementação dos princípios constitucionais da razoabilidade e da proporcionalidade.

 

Esclareceu que, caso as armas de fogo e as munições apreendidas sejam destinadas às polícias, os custos atinentes ao treinamento para manuseio delas, à manutenção, ao controle e à aquisição de acessórios específicos para cada tipo e marca de arma desestimulam a adoção da medida requerida pelo Ministério Público Federal, em vista da necessária padronização do acervo bélico utilizado pelas instituições estatais.    

 

Pleiteou o indeferimento da medida liminar requestada, ante a inexistência de plausibilidade do direito invocado, pois não operou o legislador ordinário de maneira desarrazoada ou arbitrária ao confeccionar o art. 32 e seu parágrafo único da Lei nº 10.826/2003, que se orientou pela necessidade de diminuição da violência e do efetivo controle pelo Estado da segurança pública, que recomenda que as armas e munições apreendidas sejam efetivamente destruídas.   

 

Nas f. 21/28, este juízo concedeu liminar, conferindo-lhe abrangência nacional, no sentido de determinar que a União Federal, por intermédio dos Ministérios da Defesa e da Justiça, e do Departamento de Polícia Federal, abstivesse-se de destruir as armas, os acessórios e as munições que se encontrem em bom estado de conservação, ou que tenham valor histórico-cultural ou artístico, mantendo-as sob sua guarda em lugar seguro e adequado, a seu critério, até decisão final neste processo.

 

Inconformada com a decisão acima, a União Federal interpôs Pedido de Suspensão da Liminar junto ao Tribunal Regional Federal da Quinta Região, que, através da decisão monocrática de f. 65/69 da lavra do seu Vice-Presidente, cujo original se encontra nas f. 77/81, suspendeu liminarmente a decisão proferida em primeiro grau, por entendê-la afrontosa à ordem pública.

 

Nas f. 88/93, a ré apresentou sua resposta, em forma de contestação, sustentando que a ratio legis da Lei nº 10.826/03 é a necessidade de se desarmar a população brasileira, com o objetivo de diminuir a violência e aumentar a segurança pública e, por isso, o seu art. 32 determina a destruição incondicional das armas apreendidas, encontradas ou recebidas em decorrência da campanha do desarmamento; que as dificuldades oriundas de um eventual processo de regularização e destinação deste material e os riscos de seu armazenamento conduziriam ao insucesso os objetivos da mencionada campanha, uma vez que os armamentos não destruídos podem ser desviados para fins indesejados; e que esse procedimento de diminuição de violência é adotado no mundo inteiro.

 

O Ministério Público Federal se manifestou sobre a contestação na f. 95v, reiterando os argumentos expendidos na inicial e requerendo o julgamento antecipado da lide.

Na f. 96, há despacho deste juízo anunciou o julgamento antecipado da lide.

Após, os autos volveram-me conclusos para a prolação da sentença.

 

É O RELATÓRIO.

DECIDO.

 

Em princípio, é de bom alvitre deixar bem claro que o Juiz ora sentenciante jamais criticou ou entendeu descabida a iniciativa do Governo Federal intitulada “Campanha do Desarmamento”, muito pelo contrário. Louvável se mostra tal procedimento, mormente no que se reporta às armas de fogo não registradas em nome de seus proprietários ou possuidores, com vistas a reduzir a crescente escalada de crimes que assola todo o país, fruto, em parte, do uso indiscriminado de armas, resultando na ocorrência de considerável número de homicídios e outros delitos contra a vida e a integridade física das pessoas, o patrimônio, os costumes, dentre outros bens protegidos pelo ordenamento jurídico.

 

Contudo, não podemos olvidar que, paralelamente ao desarmamento da população – diga-se a população não marginalizada – é necessário armar as Polícias e as Forças Armadas, aquelas não raro desprovidas de armamentos e munições suficientes ao combate ao crime, já tendo se tornado notícia do dia a dia ataques a repartições policiais, como Delegacias de Polícia, Quartéis, Postos Policiais, viaturas, dada a fragilidade da Polícia, especialmente do armamento utilizado. Assim, é inquestionável a necessidade do Estado promover a segurança pública, fortalecendo as instituições policiais e as próprias Forças Armadas, dotando-as, sobretudo, de armas e munições que lhes permitam cumprir com suas atribuições constitucionais e legais.

 

Nessa seara, merecem análise as normas encravadas no art. 32 e seu parágrafo único da Lei nº10.826/2003, que preconizam o seguinte:

 

 “Art. 32. Os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas poderão, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação desta Lei, entregá-las à Polícia Federal, mediante recibo e, presumindo-se a boa-fé, poderão ser indenizados, nos termos do regulamento desta Lei.

 Parágrafo único. Na hipótese prevista neste artigo e no art. 31, as armas recebidas constarão de cadastro específico e, após a elaboração de laudo pericial, serão encaminhadas, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, ao Comando do Exército para destruição, sendo vedada sua utilização ou reaproveitamento para qualquer fim.” – sem grifo no original.

 

Pela leitura do artigo acima transcrito, percebemos que, aparentemente, há contradição no seu parágrafo único, quando estabelece que os armamentos recolhidos sejam destruídos somente após a elaboração de laudo pericial, exigindo do aplicador da lei uma interpretação teleológica, alicerçada nos fins sociais a que a norma se propõe e de acordo com o art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil: 

 

“Art. 5º Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”

 

Ao lecionar sobre o conceito de interpretação teleológica, a laureada professora Maria Helena Diniz, na brilhante obra intitulada “Compêndio de Introdução à Ciência” (São Paulo: Ed. Saraiva, 15ª edição 2003, p. 428/429), explana o seguinte:

“(...)

O processo sociológico ou teleológico objetiva, como quer Ihering, adaptar a finalidade da norma às novas exigências sociais. Adaptação esta prevista pelo art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil. A interpretação, como nos diz Ferrara, não é pura arte dialética, não se desenvolve como método geométrico num círculo de abstrações, mas prescruta as necessidades práticas da vida e a realidade social. O aplicador, nas palavras de Henri de Page, não deverá quedar-se surdo às exigências da vida, porque o fim da norma não deve ser a imobilização ou a cristalização da vida, e, sim, manter contato íntimo com ela, segui-la em sua evolução e a ela adaptar-se. Daí resulta, continua ele, que a norma se destina a um fim social, de que o magistrado deve participar, ao interpretar o preceito normativo.

A técnica teleológica procura o fim, a ratio do preceito normativo, para a partir dele determinar o seu sentido. O sentido normativo requer a captação dos fins para os quais se elaborou a norma, exigindo, para tanto, a concepção do direito como um sistema, o apelo às regras da técnica lógica válidas para séries definidas de casos, e a presença de certos princípios que se aplicam para séries indefinidas de casos, como o da boa-fé, o da exigência de justiça, o do respeito aos direitos da personalidade, o da igualdade perante a lei etc. Isto é assim porque se coordenam todas as técnicas interpretativas em função da teleologia que controla o sistema jurídico, visto que a percepção dos fins exige não o estudo de cada norma isoladamente, mas sua análise no ordenamento jurídico como um todo.

(...)”

 

Tendo em vista os fins sociais a que a norma em exame se propõe e sob a ótica da teleologia, entendo ser equivocada a interpretação dada pela Administração ao art. 32 e seu parágrafo único da Lei nº 10.826/2003, porquanto a regra em estudo prevê a elaboração de laudo pericial das armas apreendidas, em decorrência da campanha do desarmamento, antes de serem destruídas, o que deixa implícito que o laudo técnico se presta a identificar a arma e a atestar o estado de conservação em que ela se encontra, de modo a dar-lhe a destinação adequada, encaminhando à destruição apenas aquelas consideradas inúteis e inservíveis ao serviço público. Adotar outro entendimento significa concluir que todo o trabalho dos Peritos Públicos, previsto na norma, é absolutamente desnecessário, onerando o Erário para o nada e produzindo um laudo pericial sem qualquer finalidade pública, tornando o ato administrativo nulo e podendo ensejar até responsabilidade funcional. Nessa hipótese, como patenteia o autor, bastaria a feitura do cadastro específico a que alude a lei.

 

Como bem positivou o Ministério Público Federal, f. 03/04, em relação ao questionado art. 32 e seu parágrafo único:

 

“É evidente a má técnica legislativa, mas isso não legitima a pior interpretação, a mais irracional. O legislador não autorizou a destruição das armas em condições de uso, mas tão somente daquelas imprestáveis. Chega-se a tal conclusão pela exigência, prevista no parágrafo único do artigo supratranscrito, de laudo pericial, que visa justamente a atestar que o equipamento é inservível para a Administração. Do contrário, qual a utilidade do laudo pericial? Bastaria a outra previsão, do cadastro específico e as armas poderiam ser encaminhadas todas à destruição, sem ocupar desnecessariamente um perito, para cada armamento recepcionado..!”

 

De fato, tendo em vista a crise econômica por que passa o país já há um bom tempo, a destruição indiscriminada das armas se consubstancia em conduta desarrazoada e atentatória aos princípios constitucionais da primazia do interesse público e da eficiência, a teor do art. 37, caput, da Constituição Federal, pois nada impede que aquelas consideradas aptas, pela perícia, a serem reutilizadas, sejam aproveitadas pelas Polícias Civil e Militar e também pelas Forças Amadas. Tal providência só viria a beneficiar a própria Administração Pública, em todas as esferas de governo, mormente na área da segurança pública, que carece de recursos financeiros para prestar um serviço de melhor qualidade à população.

 

Além disso, não se pode olvidar que as armas em questão são objeto de indenização pela União Federal, no importe de R$ 100,00 (cem reais), por arma arrecadada, podendo ser maior a indenização em caso de armamento mais potente, não sendo razoável e proporcional a destruição desse patrimônio, adquirido pelo Poder Público, com recursos do Erário, de forma indiscriminada e descriteriosa, mormente quando vemos que o Governo alega, a todo instante, que não dispõe de numerário suficiente para custear integralmente os serviços públicos mais urgentes, a exemplo da segurança pública.

 

Não se pode desprezar, também, as armas e munições de valor histórico-cultural e artístico, que fazem parte do patrimônio nacional, razão pela qual são plenamente tuteladas pelo Estado, através da legislação vigente, consoante transcrito abaixo:

 

CONSTITUIÇÃO FEDERAL:

“Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes de cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

(...)

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I – as formas de expressão;

II – os modos de criar, fazer e viver;

III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;

V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

§ 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

(...)” – sem grifo no original.

 

LEI Nº 4.717/65 (LEI DA AÇÃO POPULAR):

“Art. 1º Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios, de entidades autárquicas, de sociedades de economia mista (Constituição, art. 141, § 38), de sociedades mútuas de seguro nas quais a União represente os segurados ausentes, de empresas públicas, de serviços sociais autônomos, de instituições ou fundações para cuja criação ou custeio o tesouro público haja concorrido ou concorra com mais de 50% (cinqüenta por cento) do patrimônio ou da receita anual de empresas incorporadas ao patrimônio da União, do Distrito federal, dos Estados e dos Municípios, e de quaisquer pessoas jurídicas ou entidades subvencionadas pelos cofres públicos.

§ 1º Consideram-se patrimônio público, para os fins referidos neste artigo, os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico.

(...)” – sem grifo no original.

 

LEI Nº 7.347/85 (LEI DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA):

Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados:

(...)

III – aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;

 

A preservação e a defesa do patrimônio histórico-cultural e artístico são tão veementes na lei e de tamanha importância para o Estado e a coletividade que os agentes públicos, cujas condutas violem esses objetivos, ficam sujeitos a responder por ato de improbidade administrativa, com as sanções dele decorrentes, descritas no art. 37, § 4º, da Lei Magna e na Lei nº 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa). 

 

Essa providência judicial, por certo, incentivará a que muitos cidadãos disponham-se a entregar suas armas e munições, sabendo que serão utilizadas para um fim nobre, qual seja, a segurança pública, e os que dispõem de armas e munições de valor histórico-cultural e artístico as entregarão na certeza de que serão conservadas e servirão para imortalizar eventos e acontecimentos que devem ser transmitidos às novas gerações. Não será lícito destruir armas e munições utilizadas em eventos ou combates, que entraram para a história do Brasil, e que devem ser destinadas a museus e estabelecimentos congêneres.

 

Por conseguinte, afigura-se-me inconstitucional a interpretação dada, pela ré, ao parágrafo único do art. 32 da Lei nº 10.826/2003, no que pertine à destruição de armas servíveis e de valor histórico-cultural e artístico, por ofensa aos dispositivos constitucionais acima reportados. É cediço que cabe ao julgador interpretar as normas infraconstitucionais sob a ótica da Constituição Federal, único instrumento apto a servir de lume para todo o ordenamento jurídico pátrio, devido à sua incontestável supremacia.

 Posto isso, extinguo o processo, com julgamento do mérito, nos termos do art. 269, I, do Código de Processo Civil, acolhendo in totum a pretensão autoral para determinar que a União Federal, através do Ministério da Justiça e do Departamento de Polícia Federal, abstenha-se de destruir armas, acessórios e munições que estejam em condições de uso, segundo laudo pericial, dando a tais materiais destinação no âmbito dos órgãos da segurança pública e das Forças Armadas, a seu critério, priorizando-se a incorporação dos equipamentos ao patrimônio federal; e que se abstenha de destruir armas e acessórios de valor histórico ou artístico, consoante análise do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ou de outro órgão especializado para esse fim, destinando-se tais equipamentos ao próprio IPHAN e a museus federais, estaduais e municipais, cujo acervo seja pertinente.  

 

Confiro abrangência nacional a esta sentença. Primeiro, porque a eficácia da decisão proferida na ação civil pública é erga omnes, não podendo a nova redação dada ao art. 16 da Lei nº 7.347/85, pela Medida Provisória nº 1.570-5, posteriormente convertida na Lei nº 9.494/97, restringi-la aos limites da competência territorial do órgão julgador, por ser flagrantemente inconstitucional, diante dos princípios da razoabilidade, proporcionalidade e da isonomia, pois fulmina o principal objetivo de uma decisão coletiva, isto é, a eficácia erga omnes irrestrita.  Segundo, porque não constitui critério determinante da extensão da eficácia da decisão na ação civil pública a competência territorial do juízo, mas a amplitude e a indivisibilidade do dano que se pretende evitar.  Terceiro, porque a alteração do art. 16 da Lei nº 7.347/85, ainda que constitucional fosse, restou inócua, tendo em vista que a Lei nº 9.494/97 não alterou o art. 103 do Código de Defesa do Consumidor – CDC, que dispõe sobre os efeitos erga omnes e ultra partes das sentenças e aplica-se, face ao art. 117 do CDC, a todas as ações civis públicas e não somente àquelas que versem sobre relação de consumo, como deflui das razões aduzidas pelo autor.

Sem pagamento de custas processuais, em virtude do art. 4º, I, da Lei nº 9.289/96.

Sem condenação em honorários advocatícios, uma vez que o Procurador da República já é remunerado pelos cofres públicos.

 

Oficie-se, pelo meio mais célere possível, aos Excelentíssimos Senhores Ministros da Defesa e da Justiça, bem assim ao Senhor Diretor-Geral da Polícia Federal e, ainda, aos Senhores Superintendentes da Polícia Federal nas Unidades Federativas, encaminhando-lhes cópia desta sentença para o seu fiel cumprimento.

 

Façam-se as comunicações de praxe.

 

Sentença sujeita ao reexame necessário, a teor do art. 475, I, do Código de Processo Civil.

 

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

 

Aracaju, 26 de outubro de 2004.

 

 

 

Juiz Edmilson da Silva Pimenta