Ação: Diversa
– Imissão de Posse
Réu:
Emanuel Messias Pereira dos Santos
Administrativo e Constitucional. Imissão de Posse.
Ocupante de área definida como reserva ecológica
-
A existência
jurídica de reserva ecológica independe da efetividade da cessão de sua
respectiva área a órgão potencialmente incumbido de sua implantação;
-
Determinação
de desocupação amparada pela Lei 9.636/98;
-
Legalidade e
legitimidade do procedimento administrativo;
-
Não tem direito
à permanência o ocupante de área definida como reserva ecológica, em face
da precariedade da permissão de uso de bem comum do povo.
SENTENÇA:
Vistos etc...
União Federal, qualificada na
inicial de fls. 02, intenta, em face de Emanuel Messias Pereira dos Santos, a
presente ação de rito ordinário, com pedido de antecipação de tutela,
objetivando ser imitida na posse
de área localizada na Reserva Biológica de Santa Isabel.
Junta
documentos, pede a antecipação da tutela e, ao final, a procedência do
pedido.
Em
decisão de fls. 21/22, deferi a antecipação da tutela.
Citado,
o réu contesta o feito, refutando a tese da União Federal, alegando que já
ocupa uma área na Praia de Santa Izabel desde 1985 e que a Reserva inexiste,
pois a Portaria e o Decreto que a criaram tiveram sua vigência expirada em
1990. Aduz, ainda, que sua permanência na área não causa qualquer prejuízo
à natureza e à reprodução das tartarugas, fazendo parte, inclusive, de uma
associação de moradores e barraqueiros com este objetivo.
Juntou
documentos (fls. 35/86).
O
réu trouxe comprovante de interposição de agravo de instrumento contra a
decisão de fls. 21/22.
A
União manifestou-se sobre a contestação.
Intimado,
a pedido do MPF (fls. 110), o IBAMA manifestou interesse no feito (fls. 114).
Nas
fls. 117, proferi despacho saneando o processo, determinando que a autora
trouxesse aos autos o título de ocupação que o réu afirmou possuir.
A
União manifestou-se às fls. 118/119, dizendo que a ocupação, ainda que
houvesse título, seria precária.
O
IBAMA, nas fls. 121/126, peticionou nos autos requerendo a procedência do
pedido autoral.
O
réu, por sua vez, manifestou-se às fls. 128/129, pugnando pela oitiva de
testemunhas para comprovar seu tempo de ocupação na área.
Em
seu parecer, o MPF opina pela procedência do feito.
É o relatório.
Inicialmente,
cabe destacar que, ao proferir o despacho de fls. 117, entendi que seria
desnecessária maior instrução probatória e, não tendo as partes recorrido
daquela decisão, a matéria ficou preclusa, daí porque indefiro o pedido de
oitiva de testemunhas formulado às fls. 129.
Passo
à decisão do feito.
Com
efeito, a resistência do réu parte de premissas sucessivamente equivocadas.
Vejamos.
A
primeira consiste em confundir uma portaria que regula a formalização de um
contrato de cessão da área ao
antigo IBDF (portaria MF 074/86) e a criação da Reserva Ecológica de Santa
Izabel (Decreto 96.999/88).
A
citada portaria retirava sua validade jurídica do Decreto-lei nº 178/67,
diploma que preconizava a cessão de bens de cujo domínio a União fosse
titular a certas entidades sob determinadas condições. O ato normativo
colacionado às fls. 36/37 nada mais fez do que permitir, ao então IBDF, a
utilização gratuita do terreno em foco, mediante cessão, sob prazo
prefixado, visando o procedimento de instalação da Reserva.
O
Decreto 96.999/88 (em vigência), por seu turno, editado em data posterior, ao
abrigo da atual Constituição, criou, para fins de direito, a prefalada
Reserva, não havendo motivos, lógicos ou simplesmente jurídicos, que
permitam vislumbrar uma prejudicialidade entre a cessão da área e sua criação
como reserva ecológica.
Vale
dizer, com isso, que a criação da Reserva Ecológica de Santa Izabel
encontra fundamento jurídico próprio, autônomo, distinto daquele que
viabilizou a cessão. A primeira confere existência qualificada no mundo do
Direito; a segunda tem por escopo o gerenciamento de um bem por terceiro em
função de determinados propósitos. Se
a cessão não se efetivou tempestivamente e, em razão disso, restou atingida
por nulidade (do que, particularmente, discordo), a única consequência seria
não mais poder o IBDF utilizar-se da área, circunstância despida de
qualquer relevância em relação à matéria versada nos autos, tendo em
vista que a desocupação é pleiteada pela União Federal, proprietária –
não mera cessionária – da Praia de Santa Izabel (CF, art. 20,
IV).
Concluo,
destarte, pela válida existência da Reserva Ecológica de Santa Isabel.
Em
face desse raciocínio, devem-se-lhe aplicar, consectariamente, as normas
legais pertinentes às localidades assim definidas. Dentre essas, há a Lei
9.636/98. Inobstante invocada em prol do réu, seu art. 9º, inciso II, veda
ocupações (designação extensível ao imóvel defendido na inicial) em áreas
de preservação ambiental ou necessárias à proteção dos ecossistemas
naturais, dentre outras. Por sua vez, o art. 10 e seu parágrafo determina o
cancelamento da inscrição de semelhantes ocupações, a imissão da posse no
terreno e a indenização da União até a efetiva desocupação. Creio não
haver dúvida de que uma reserva ecológica subsume-se ao conceito de área de
preservação ambiental ou necessária à proteção dos ecossistemas
naturais.
Em
mesmo tom, é evidente que uma frágil situação de ocupação, uma vez
proibida, tem sua conversão em aforamento inibida, pois este último é
instituto do qual defluem maiores prerrogativas ao particular em face da
Administração, porque viabiliza a aquisição do domínio direto do imóvel
(ADCT, art. 49), peculiaridade essa antevista, aliás, ao menos
implicitamente, pelo § 3º, do art. 12, da Lei 9.636/98. A par disso, não há
sequer cogitar de “direito de preferência”
em razão da ocupação descrita nos autos. Ela é tida como ilegal e
ilegalidades não engendram direitos em benefício de quem nelas incorra.
Sob
novo prisma, as restrições impostas pelo diploma legal em voga contam com
substrato constitucional, especialmente situado no art. 225, § 1º, III e
VIII da Carta Magna, traduzindo-se em nítido desdobramento do direito à
vida. Assim, além de estar a atitude da autora apoiada em lei, essa atitude
ganha legitimidade na medida em que seu apoio legal confere operatividade, em
última análise, ao direito fundamental por excelência (direito à vida),
indubitavelmente prevalecente, por obra do princípio da proporcionalidade,
sobre um tênue reflexo do direito à propriedade, mormente se constatado que, à distância de controvérsia, por tudo
é corroborada a convicção de que o bem do réu sequer destina-se à sua
moradia, não passando de imóvel destinado a veraneio (fls. 35, 53/57), uma
vez que reside em Aracaju e em bairro de classe média, conforme declinou no
instrumento de mandato de fls. 35, longe, portanto, de ser um humilde
barraqueiro, como afirmou em sua peça defensiva.
Deveras,
quanto ao proceder da União, não cabe censura, no particular. Veja-se que o
próprio réu revela ter contado com defesa administrativa, resguardando-se,
portanto, o devido processo
legal, além de serem inquestionáveis a forma do ato e a competência para
realizá-lo.
A
respeito da tese concernente à proteção possessória nos moldes do direito
material civil e à existência de direito adquirido, esquece-se o réu da
natureza indeclinavelmente precária de uma ocupação
de um bem de uso comum do povo (como o é a Praia de Santa Izabel). Tal
precariedade, esclareça-se, é corolário do princípio da predominância do
interesse público sobre o particular. Em outras palavras, a ocupação,
verdadeira permissão de uso, não gera qualquer direito subjetivo à posse em
benefício do ocupante, de onde se infere, logicamente, não haver direito
adquirido pela simples impossibilidade de se adquirir o que não
existe.
Partindo
de semelhantes proposições, confira-se a lapidar conclusão esposada pela
ilustre Maria Sylvia Zanella Di Pietro, especialmente no que tange a ações
possessórias em casos análogos ao presente[1]
:
“Há de se atentar, no entanto, que o titular
de uso privativo pode propor ação possessória contra terceiros; não cabe
contra a Administração quando esta usa legitimamente
seu poder de extinguir o uso privativo por razões de interesse público.
Mesmo contra terceiros, não cabe ação possessória
quando se tratar de uso precário (sem
prazo), revogável ad nutum pela Administração, porque isto conflitaria com a regra
do art. 497 do Código Civil, em cujos termos “não induzem posse os atos de
mera permissão ou tolerância”.
Assim,
em face da existência, para efeitos jurídicos, da Reserva Ecológica de
Santa Izabel, da disciplina legal e constitucional a ela aplicável, da lisura
do procedimento da acionada, da inexistência de direitos possessórios e de
direito adquirido, não há como deixar de acolher a pretensão da União
Federal e do IBAMA.
Isto posto, julgo procedente o pedido para
reconhecer o direito da União Federal em ser imitida na área individualizada
pelo antigo cadastro de n.º 3197.0000010-02, pelo que torno definitiva a
tutela antecipadamente deferida às fls. 21/22.
Condeno o Réu a pagar as custas e honorários
de advogado em 10% sobre o valor da causa, à União Federal e ao IBAMA,
pro-rata.
Oficie-se ao relator do agravo de instrumento
noticiado às fls. 90, remetendo-lhe cópia desta sentença.
P.R.I.
Aracaju, 18 de dezembro de 2002.
Juiz
Federal – 1ª Vara