Artigo

 

O Pequeno Príncipe e a maturidade

 Por Telma Maria Santos[1]

 

Na época áurea dos concursos de Miss Brasil era comum algumas candidatas responderem que o livro de cabeceira delas era “O Pequeno Príncipe”. Mas era habitual, também, a ironia de algumas pessoas em relação à preferência exposta pelas moças.

Não quero entrar no mérito de saber se as candidatas à miss fizeram a análise do livro à luz da filosofia da vida cotidiana. Deixemos para lá tal indagação porque ela não trará qualquer tempero para o contexto.

O fato é que, por trás da suposta simplicidade de algumas afirmativas daquela criança, retratada de maneira tão comovente por Antoine de Saint Exupery, há verdades profundas e lições indispensáveis para a eterna busca da felicidade, conquista interior, em relação à qual, a maturidade é o caminho necessário.

Parodiando o poeta Olavo Bilac, ora direis, onde estão tais frases de cunho tão profundo numa obra supostamente tão simples? Continuando a parodiar o gênio Bilac, eu vos direi que estão permeando todo o livro, mas escolherei apenas três delas para reflexão.

A primeira delas é dita pelo principezinho: “os homens plantam cinco mil rosas num mesmo jardim e não encontram o que procuram. E, no entanto, o que eles procuram poderia ser encontrado numa só rosa (...). Mas os olhos são cegos. É preciso ver com o coração”.[2]  Essa frase, de tocante carga sentimental, ele a pronunciou após ter descoberto que a solitária flor existente no seu pequeno planeta mentira, ao se dizer única, e, também, depois do seu encontro com a raposa, que lhe fizera ver que a rosa dele era única no mundo porque fora ela que o principezinho cativara. E foi o tempo que lhe dedicara que a fizera tão importante, ponderou aquele perspicaz canídeo.

A raposa também ensinou ao pequeno o que significava cativar: criar laços. Ou seja, estabelecer conexão, liame, amar e estar pronto para as conseqüências do amor, tais como a atenção, o cuidado e o perdão. Esta é a tríade indispensável para que os laços sejam seguros onde quer que se esteja, no tempo e no espaço.

Era, pois, de amizade, que a raposa falava ao príncipe, tal aquela lembrada por Gabriel Chalita na sua excepcional obra “Pedagogia do Amor”.  Para retratar o valor da amizade, ele recorreu a uma história contada por Cícero (orador romano, eleito cônsul no ano 63 a.C): a história dos amigos Damon e Pítias (seguidores de Pitágoras), ocorrida no século IV a.C., em Siracusa, no reinado de Dionísio.

Quando Pítias foi condenado à morte pelo soberano, pediu apenas que lhe permitisse se despedir da família e resolver alguns assuntos pendentes. Diante da relutância do rei, Damon se ofereceu para ficar no lugar do amigo, tão confiante estava de que Pítias jamais o deixaria morrer no seu lugar. De fato, Pítias “voltou no dia combinado, e o tirano, surpreso e arrebatado com tanta lealdade, solicitou que o acolhessem nessa amizade tão perfeita”.[3] 

Por outro lado, o aparente exagero da colocação do pequeno príncipe significa as buscas incessantes por coisas e situações como forma de fugir do adiado, porém inevitável auto-encontro. Afinal, o ego é hábil em mascarar as reais necessidades, daí porque inventa cinco mil caminhos que levam a lugar nenhum, mas que são potencialmente danosos porque desviam da rota do aprimoramento.

Um mergulho profundo na consciência, tal como indicou Sócrates através da contundente frase “Conhece-te a ti mesmo (...)”, é a estratégia segura para o encontro, não de tudo o que se deseja, mas de tudo de que se necessita.

Portanto, a pergunta que precisa ressoar da nossa acústica mental é: o que estamos fazendo das oportunidades que a vida nos oferece, para estabelecermos pontes seguras e confiáveis que nos levem a nós mesmos e aos outros? O que precisamos apreender para sermos pontes seguras e confiáveis?

A segunda frase marcante da obra de Exupéry sai da boca do próprio autor, com o intuito de alerta, numa rara advertência que ele se permitiu fazer: “Crianças! cuidado com os baobás!”[4].

Os baobás eram uma planta muito comum no planeta do pequeno príncipe e, tão danosa, que deviam ser extirpadas logo que germinassem, ocasião em que se percebia não se tratar de roseiras. O cuidado tinha que ser diário e requeria muita disciplina, pois, se tal planta crescesse, as raízes penetrariam de tal forma no solo que atravancariam e, se pequeno fosse o planeta e numerosos os baobás, explica Exupéry, rachariam o corpo celeste. Em suma, os baobás eram uma praga que precisava ser diuturnamente combatida.

Quantas sementes de baobás atravessam os nossos caminhos! Se não temos como evitá-las, até porque muitas delas são necessárias para o nosso aprendizado e conseqüente amadurecimento, devemos aprender a identificá-las logo que ponham “as manguinhas de fora”.

Os baobás ali representam todos os sentimentos e atitudes deletérias que são potencialmente capazes de tornar imprestável o nosso universo interior e exterior, porque transbordamos esses malefícios para o meio externo, dele fazendo um local insalubre, doentio, árido, insuportável.

Os baobás, corrosivos, infiltradores, traduzem-se em diversos sentimentos humanos tais como o orgulho, a vaidade, a prepotência, o ciúme, a inveja, a culpa improdutiva, o egoísmo, o preconceito, o complexo de superioridade, a intolerância, a maledicência etc. Imperfeitos que todos somos, vários destes sentimentos nos visitam, mas depende do nosso livre arbítrio e de disciplina comportamental eles terem abrigo ou não em nossa casa mental. Se fizermos a faxina diuturnamente, deixando espaço apenas para as antíteses destes sentimentos, naturalmente teremos uma mente tranqüila, leve, confiante, madura.

Pontes seguras são, portanto, as pessoas que pelo menos se esforçam para transformar a paisagem interior, de forma a pintá-la com as cores sublimes dos sentimentos e atitudes nobres. Estas pessoas assemelham-se àquela rosa preciosa do planeta do Pequeno Príncipe, e serão sempre os melhores amigos, as melhores pessoas.

A terceira frase, dita pela única flor do planeta do Pequeno Príncipe, tem o seguinte teor: “É preciso que eu suporte duas ou três larvas se quiser conhecer as borboletas. Dizem que são tão belas!”

De impressionante conteúdo poético, esta frase toma emprestado da Biologia uma das maiores lições de compreensão e paciência, para ressaltar que, pelo fato de não sermos oniscientes, nossa visão é apenas parcial, daí porque nos afligimos com um sem número de coisas. Tivéssemos a capacidade de visualizar todo o contexto delineador das ocorrências, certamente perceberíamos que nada nos acontece por acaso e que estamos no lugar e com as pessoas apropriadas para o aprendizado de que necessitamos.

Suportar as larvas equivale a nunca desistir de se melhorar e contribuir para o melhoramento dos outros. É cair e levantar em seguida porque sabe que não é um ser perfeito, mas é fadado à perfeição. É indagar o que precisa aprender com as decepções e sofrimentos e não ficar paralisado na indagação dos motivos.

Depois das noites de erros os mais diversos e das lições assimiladas, certamente estaremos preparados para ver a beleza das borboletas, com os olhos que a transformação interior modelou, ou seja, veremos com os olhos do coração.

O livro O Pequeno Príncipe, portanto, sob uma roupagem singela, convida o leitor a uma profunda reflexão sobre nós mesmos, sobre a vida e sobre o que é essencial na vida.

Então, tenhamos sempre em mente que o nosso livro de cabeceira pode ser muito mais profundo do que aparenta. Abramos, sem demora, os “olhos do coração”.


 

[1] Telma Maria Santos é Juíza federal da 1ª Vara da Seção Judiciária de Sergipe e poetisa, autora do livro Além das Flores, lançado em 2006.

 [2] Ob. cit. p. 81.

[3] CÍCERO, Marco Túlio. Dos deveres. Tradução: Alex Marins. São Paulo : Martin Claret, 2002, p. 125.

[4] SAINT EXUPÉRY, Antoine. O Pequeno Príncipe. Tradução: Dom Marcos Barbosa.  Rio de Janeiro : Agir, 2006, p. 24.

 

 

 

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