Sobre Jesus: um diálogo com Hans Kelsen –
Parte final
Por
Telma Maria Santos
No artigo
anterior, fiz uma rápida apresentação de um dos maiores
expoentes do positivismo jurídico, Hans Kelsen, e propus
reflexão sobre três frases ditas por esse grande jurista, no
livro “O que é justiça?”, acerca dos ensinamentos de Jesus.
Naquela assentada, uma das frases foi objeto da nossa
análise e, segundo antecipei, as outras duas refletiremos a
partir de agora.
1.
Diz Kelsen:
Acompanhar Cristo é incompatível não apenas com a relação
jurídica entre marido e mulher mas também com a relação
entre pais e filhos, irmãos e irmãs. (...).
Continua Kelsen: (...). E mais
uma vez ele (sic) dá o exemplo por meio de sua
postura para com sua família. Matheus, Marcos e Lucas, todos
os três relatam que Jesus ignorava qualquer relação com a
mãe e os irmãos. “E sua mãe e seus irmãos vieram. E ficaram
fora da casa e pediram que fosse ter com eles. Havia uma
multidão sentada em volta dele quando lhe disseram, ‘Tua mãe
e teus irmãos chamam por ti lá fora (sic). Ele respondeu,
‘Quem são minha mãe e meus irmãos?’ E, olhando para as
pessoas que se sentavam à sua volta, ele disse, ‘Aqui estão
minha mãe e meus irmãos! Quem quer que faça a vontade de
Deus é meu irmão e minha irmã e minha mãe’” (marcos 3,
31ss.; Mateus 12, 48 ss.; Lucas 8, 19ss.).
Não é
preciso nem lançar mão do fato de que a língua hebraica era
relativamente pobre e várias palavras tinham idêntico
significado. Aqui, há de se pontuar, mais uma vez, a
coerência durante toda a existência terrestre do Rabi até a
frase final na cruz do calvário. Assim, devemos buscar a
essência, a pedra de toque do que Ele pretendeu passar para
aqueles que tinham, têm, e terão “ouvidos para ouvir”.
A tarefa de
procurar o âmago de suas palavras é de extrema simplicidade,
bastante recordemos apenas três fatos: a) o filho devotado
que foi, já que trabalhou por longos anos na marcenaria
humilde, antes de começar a sua missão divina, numa evidente
lição de valorização do trabalho e de dedicação aos pais
terrenos; b) em Marcos, X:19, Lucas, XVIII:20 e Mateus,
XIX:19, Ele nos recorda diversos mandamentos, entre os quais
o de honrar pai e mãe; c) o primeiro milagre de Jesus se deu
na celebração de um casamento, nas chamadas “bodas de Caná”,
numa evidente demonstração de apreço pela instituição
família. Não é pelo fato de Jesus não ter-se casado que se
pode deduzir que ele era refratário ao casamento. É que na
sua grandiosa missão, a maior de todos os tempos, Este Ser
Completo sabia que precisava caminhar entre todos, amar a
todos, e se vincular apenas a Deus.
Acredito
que são suficientes as três ponderações acima para que
possamos rasgar o véu da incompreensão sem recorrermos a
grandes exercícios de hermenêutica. Portanto deixemos para
interpretações mais complexas um passeio no que se denomina
de “hermenêutica filosófica” de Hans-Georg Gadamer (1900 a
2002), filósofo alemão autor de várias obras, dentre elas,
“Verdade e Método” (“Wahrheit und Methode”).
Também não
será necessário utilizarmo-nos, mutatis mutandis, da
doutrina de Carlos Maximiliano na qual encontramos o que ele
denomina de “preceitos diretores”, aptos a auxiliarem o
hermeneuta na hipótese de se deparar com uma contradição.
São o que podemos chamar de regras de ouro necessárias para
a harmonização das disposições, dentre os quais destaco: a)
“Procure-se encarar as duas expressões de Direito como
partes de um só todo, destinadas a complementarem-se
mutuamente (...);”
b) “Prefere-se o texto mais claro, lógico, verossímil, de
maior utilidade prática e mais em harmonia com a lei em
conjunto, os usos, o sistema de Direito vigente e as
condições normais de coexistência humana. Sem embargo da
diferença de data, origem e escopo, deve a legislação de um
Estado ser considerada como um todo orgânico, exeqüível,
útil, ligado por uma correlação natural”.
Portanto,
deixada de lado qualquer idéia de ambigüidade nas palavras
do Cristo, mergulhemos na polpa deste fruto saboroso que é a
Sua lição, e, embevecidos, encontraremos a seguinte
explicação: Jesus era um exímio pedagogo, e jamais deixou
passar uma oportunidade de transmitir as mensagens
necessárias para atravessarmos as sombras das nossas
imperfeições. E a lição de então era e continuará sendo
destinada à união de todos os povos, todos os corações: a
lição da fraternidade! Naquele episódio, então, Jesus
dilatou o amor que tinha pela família para toda a
humanidade, já que somos filhos do mesmo Pai.
Parodiando
o polonês Krzysztof Kieslowski, diretor da trilogia baseada
nas cores da bandeira francesa: “A liberdade é azul”, “A
igualdade é branca” e “A fraternidade é vermelha”, diria,
pelo fato de a física ter comprovado que o branco reúne
todas as cores, que a fraternidade há de ser branca, já que
o seu manto deve recobrir todas as pessoas,
independentemente de bandeiras, idiomas, religiões ou outros
sectarismos que a imperfeição humana criou.
Jesus
aproveitou a chegada de sua mãe e irmãos e nos ensinou que
existe um sentimento que independe de nacionalidade,
línguas, vínculos biológicos: o amor. E tanto é verdade que
não são os “laços de sangue” a gênese do amor, que
observamos, já sem perplexidade, infelizmente pelo muito que
se tem repetido na história da humanidade, pais que renegam
filhos, filhos que desprezam pais, irmãos indiferentes uns
com os outros. É que o amor é indissociável da nossa
evolução espiritual, e cada um, em mais ou menos tempo,
aprenderá a amar até o sacrifício, tal como o Mestre nos
exemplificou.
Portanto, a
frase a que Hans Kelsen se reportou apenas nos exorta a amar
não somente os pais, irmãos e demais parentes, como também
aqueles que não possuem os transitórios vínculos físicos
conosco. Ela nada mais é do que um desdobramento do “amar ao
próximo como a si mesmo”.
2) Kelsen também disse: Jesus
disse aos discípulos que soubessem que seu ensinamento
poderia ter o efeito de dissolver a família: “Não sois vós
quem falará, é o espírito de vosso Pai que falará por meio
de vós. Um irmão entregará o outro à morte, e o pai o filho,
e os filhos voltar-se-ão contra os pais e os matarão”
(Mateus 10, 20 s.). Jesus não lamentava esse efeito de seu
ensinamento; até mesmo declarava-o como seu propósito: “Não
pensai que vim trazer paz à terra. Não vim para trazer a
paz, mas uma espada. Pois vim para voltar o homem contra seu
pai, e a filha contra sua mãe, e a nora contra sua sogra, e
os inimigos do homem estarão em sua própria casa”.
Pois bem,
sem a necessidade de repetir o que já foi dito acerca de
interpretação, iniciemos a reflexão.
O Cristo
era a personificação da doçura, da misericórdia; a Sua, é
uma doutrina de amor e de perdão, portanto, é induvidoso que
Ele jamais teve o propósito apontado pelo jurista no texto
acima. A frase em hipótese alguma significa a intenção d’Ele
de trazer a discórdia, a espada. Por tudo que emana da Sua
figura gloriosa, ela apenas reflete a visão futura, a pré-
ciência que Ele tinha dos fatos.
Jesus
tinha plena consciência de que a Sua doutrina era inovadora
e os valores equivocados, hipócritas e cruéis de várias
épocas incompatibilizar-se-iam com ela. Quando, alguém se
preocupara em enaltecer os humildes (pobres de espírito), os
puros de coração, os misericordiosos, os pacíficos, numa
sociedade em que a guerra e o poder eram inebriantes? Quem,
senão Ele tinha a autoridade moral e espiritual para
repreender escribas e fariseus, nos seus cultos exteriores e
pretensiosos? Quem, além d’Ele foi tão altivo e indiferente
ao poderio romano, ao explicar calmamente que o Reino d’Ele
não era desse mundo, pois que o Seu é um Reino eterno,
atemporal, conquistado somente pelo aprimoramento espiritual
e não sujeito a traças nem a ferrugem. Um Reino em que o
amor é soberano...
Naturalmente proposições como essas que exortaram a uma
completa mudança de paradigmas e de valores, haveriam de
enfrentar oposições acerbas, e muitos defensores do
Cristianismo realmente pereceram pela força simbolizada na
espada, sem falar que, posteriormente, muitos equivocados
quanto à real interpretação das propostas neotestamentárias,
violentamente impuseram uma doutrina cuja base é o amor,
tornando-se perseguidores, por sua vez.
Esqueceram-se das mais básicas lições do Mestre e
substituíram o mandamento de anunciar o evangelho para o
mundo inteiro e, portanto, dizer do amor de Deus para com
todas as criaturas, pela vontade tirana dos homens que não
“tiveram ouvidos para ouvir” e deram azo ao orgulho, à
força, à crueldade.
É típico
no ser humano tentar vingar uma ofensa a uma divindade
utilizando-se dos meios humanos para fazê-lo. Montesquieu em
belíssima passagem aconselha a forma de agir em situações
tais:
(...).
Se o magistrado, confundindo as coisas, procurar também
descobrir o sacrilégio oculto, dirige um inquérito sobre um
gênero de ação no qual ele não é necessário e destrói a
liberdade dos cidadãos, levando contra eles o zelo das
consciências tímidas e o das consciências ousadas.
Esse
mal decorre da idéia de que é necessário vingar a
divindade. Entretanto, deve-se fazer honrar a divindade,
jamais vingá-la. Com efeito, se alguém se deixasse conduzir
pela vingança, qual seria o fim dos suplícios? Se as leis
humanas têm como objetivo vingar um ser infinito,
basear-se-ão na sua
infinidade, e não em suas
fraquezas, nas ignorâncias e nos caprichos de natureza
humana.
Ainda hoje
teimamos em fazer Deus e Jesus à nossa imagem e semelhança,
conferindo-lhes caracteres humanos e, portanto, falíveis, ao
invés de implementarmos com pensamentos, palavras e
atitudes, a aproximação com a grandeza espiritual de Jesus.
O que nos
salva é que Jesus jamais se cansará e, assim sendo, o
determinismo, em a nossa estrada infinita, é o amor e o
aperfeiçoamento.
Eis,
Kelsen, que Paulo de Tarso já prevenira que “a letra mata e
o espírito vivifica”.
Portanto, é necessário transpor
a névoa das letras para
encontrar a luz imperecível da lição.
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