Notícia

 

Sobre Jesus: um diálogo com Hans Kelsen – Parte final

 Por Telma Maria Santos[1]

  

No artigo anterior, fiz uma rápida apresentação de um dos maiores expoentes do positivismo jurídico, Hans Kelsen, e propus reflexão sobre três frases ditas por esse grande jurista, no livro “O que é justiça?”, acerca dos ensinamentos de Jesus. Naquela assentada, uma das frases foi objeto da nossa análise e, segundo antecipei, as outras duas refletiremos a partir de agora.

 

1.   Diz Kelsen: Acompanhar Cristo é incompatível não apenas com a relação jurídica entre marido e mulher mas também com a relação  entre pais e filhos, irmãos e irmãs. (...).[2]

Continua Kelsen: (...). E mais uma vez ele (sic) dá o exemplo por meio de sua postura para com sua família. Matheus, Marcos e Lucas, todos os três relatam que Jesus ignorava qualquer relação com a mãe e os irmãos. “E sua mãe e seus irmãos vieram. E ficaram fora da casa e pediram que fosse ter com eles. Havia uma multidão sentada em volta dele quando lhe disseram, ‘Tua mãe e teus irmãos chamam por ti lá fora (sic). Ele respondeu, ‘Quem são minha mãe e meus irmãos?’ E, olhando para as pessoas que se sentavam à sua volta, ele disse, ‘Aqui estão minha mãe e meus irmãos! Quem quer que faça a vontade de Deus é meu irmão e minha irmã e minha mãe’” (marcos 3, 31ss.; Mateus 12, 48 ss.; Lucas 8, 19ss.).[3]

Não é preciso nem lançar mão do fato de que a língua hebraica era relativamente pobre e várias palavras tinham idêntico significado. Aqui, há de se pontuar, mais uma vez, a coerência durante toda a existência terrestre do Rabi até a frase final na cruz do calvário. Assim, devemos buscar a essência, a pedra de toque do que Ele pretendeu passar para aqueles que tinham, têm, e terão “ouvidos para ouvir”.

A tarefa de procurar o âmago de suas palavras é de extrema simplicidade, bastante recordemos apenas três fatos: a) o filho devotado que foi, já que trabalhou por longos anos na marcenaria humilde, antes de começar a sua missão divina, numa evidente lição de valorização do trabalho e de dedicação aos pais terrenos; b) em Marcos, X:19, Lucas, XVIII:20 e Mateus, XIX:19, Ele nos recorda diversos mandamentos, entre os quais o de honrar pai e mãe; c) o primeiro milagre de Jesus se deu na celebração de um casamento, nas chamadas “bodas de Caná”, numa evidente demonstração de apreço pela instituição  família. Não é pelo fato de Jesus não ter-se casado que se pode deduzir que ele era refratário ao casamento. É que na sua grandiosa missão, a maior de todos os tempos, Este Ser Completo sabia que precisava caminhar entre todos, amar a todos, e se vincular apenas a Deus.

Acredito que são suficientes as três ponderações acima para que possamos rasgar o véu da incompreensão sem recorrermos a grandes exercícios de hermenêutica. Portanto deixemos para interpretações mais complexas um passeio no que se denomina de “hermenêutica filosófica” de Hans-Georg Gadamer (1900 a 2002), filósofo alemão autor de várias obras, dentre elas, “Verdade e Método” (“Wahrheit und Methode”).

Também não será necessário utilizarmo-nos, mutatis mutandis, da doutrina de Carlos Maximiliano na qual encontramos o que ele denomina de “preceitos diretores”, aptos a auxiliarem o hermeneuta na hipótese de se deparar com uma contradição. São o que podemos chamar de regras de ouro necessárias para a harmonização das disposições, dentre os quais destaco: a) “Procure-se encarar as duas expressões de Direito como partes de um só todo, destinadas a complementarem-se mutuamente (...);”[4] b) “Prefere-se o texto mais claro, lógico, verossímil, de maior utilidade prática e mais em harmonia com a lei em conjunto, os usos, o sistema de Direito vigente e as condições normais de coexistência humana. Sem embargo da diferença de data, origem e escopo, deve a legislação de um Estado ser considerada como um todo orgânico, exeqüível, útil, ligado por uma correlação natural”[5].

Portanto, deixada de lado qualquer idéia de ambigüidade nas palavras do Cristo, mergulhemos na polpa deste fruto saboroso que é a Sua lição, e, embevecidos, encontraremos a seguinte explicação: Jesus era um exímio pedagogo, e jamais deixou passar uma oportunidade de transmitir as mensagens necessárias para atravessarmos as sombras das nossas imperfeições. E a lição de então era e continuará sendo destinada à união de todos os povos, todos os corações: a lição da fraternidade! Naquele episódio, então, Jesus dilatou o amor que tinha pela família para toda a humanidade, já que somos filhos do mesmo Pai.

Parodiando o polonês Krzysztof Kieslowski, diretor da trilogia baseada nas cores da bandeira francesa: “A liberdade é azul”, “A igualdade é branca” e “A fraternidade é vermelha”, diria, pelo fato de a física ter comprovado que o branco reúne todas as cores, que a fraternidade há de ser branca, já que o seu manto deve recobrir todas as pessoas, independentemente de bandeiras, idiomas, religiões ou outros sectarismos que a imperfeição humana criou.

Jesus aproveitou a chegada de sua mãe e irmãos e nos ensinou que existe um sentimento que independe de nacionalidade, línguas, vínculos biológicos: o amor. E tanto é verdade que não são os “laços de sangue” a gênese do amor, que observamos, já sem perplexidade, infelizmente pelo muito que se tem repetido na história da humanidade, pais que renegam filhos, filhos que desprezam pais, irmãos indiferentes uns com os outros. É que o amor é indissociável da nossa evolução espiritual, e cada um, em mais ou menos tempo, aprenderá a amar até o sacrifício, tal como o Mestre nos exemplificou.

Portanto, a frase a que Hans Kelsen se reportou apenas nos exorta a amar não somente os pais, irmãos e demais parentes, como também aqueles que não possuem os transitórios vínculos físicos conosco. Ela nada mais é do que um desdobramento do “amar ao próximo como a si mesmo”.

 

2) Kelsen também disse: Jesus disse aos discípulos que soubessem que seu ensinamento poderia ter o efeito de dissolver a família: “Não sois vós quem falará, é o espírito de vosso Pai que falará por meio de vós. Um irmão entregará o outro à morte, e o pai o filho, e os filhos voltar-se-ão contra os pais e os matarão” (Mateus 10, 20 s.). Jesus não lamentava esse efeito de seu ensinamento; até mesmo declarava-o como seu propósito: “Não pensai que vim trazer paz à terra. Não vim para trazer a paz, mas uma espada. Pois vim para voltar o homem contra seu pai, e a filha contra sua mãe, e a nora contra sua sogra, e os inimigos do homem estarão em sua própria casa”[6].

 

Pois bem, sem a necessidade de repetir o que já foi dito acerca de interpretação, iniciemos a reflexão.

 O Cristo era a personificação da doçura, da misericórdia; a Sua, é uma doutrina de amor e de perdão, portanto, é induvidoso que Ele jamais teve o propósito apontado pelo jurista no texto acima. A frase em hipótese alguma significa a intenção d’Ele de trazer a discórdia, a espada. Por tudo que emana da Sua figura gloriosa, ela apenas reflete a visão futura, a pré- ciência que Ele tinha dos fatos.

 Jesus tinha plena consciência de que a Sua doutrina era inovadora e os valores equivocados, hipócritas e cruéis de várias épocas incompatibilizar-se-iam com ela. Quando, alguém se preocupara em enaltecer os humildes (pobres de espírito), os puros de coração, os misericordiosos, os pacíficos, numa sociedade em que a guerra e o poder eram inebriantes? Quem, senão Ele tinha a autoridade moral e espiritual para repreender escribas e fariseus, nos seus cultos exteriores e pretensiosos? Quem, além d’Ele foi tão altivo e indiferente ao poderio romano, ao explicar calmamente que o Reino d’Ele não era desse mundo, pois que o Seu é um Reino eterno, atemporal, conquistado somente pelo aprimoramento espiritual e não sujeito a traças nem a ferrugem. Um Reino em que o amor é soberano...

 Naturalmente proposições como essas que exortaram a uma completa mudança de paradigmas e de valores, haveriam de enfrentar oposições acerbas, e muitos defensores do Cristianismo realmente pereceram pela força simbolizada na espada, sem falar que, posteriormente, muitos equivocados quanto à real interpretação das propostas neotestamentárias, violentamente impuseram uma doutrina cuja base é o amor, tornando-se perseguidores, por sua vez.

 Esqueceram-se das mais básicas lições do Mestre e substituíram o mandamento de anunciar o evangelho para o mundo inteiro e, portanto, dizer do amor de Deus para com todas as criaturas, pela vontade tirana dos homens que não “tiveram ouvidos para ouvir” e deram azo ao orgulho, à força, à crueldade.

 É típico no ser humano tentar vingar uma ofensa a uma divindade utilizando-se dos meios humanos para fazê-lo. Montesquieu em belíssima passagem aconselha a forma de agir em situações tais:

(...). Se o magistrado, confundindo as coisas, procurar também descobrir o sacrilégio oculto, dirige um inquérito sobre um gênero de ação no qual ele não é necessário e destrói a liberdade dos cidadãos, levando contra eles o zelo das consciências tímidas e o das consciências ousadas.

Esse mal decorre da idéia de que é necessário vingar a divindade.  Entretanto, deve-se fazer honrar a divindade, jamais vingá-la.  Com efeito, se alguém se deixasse conduzir pela vingança, qual seria o fim dos suplícios? Se as leis humanas têm como objetivo vingar um ser infinito, basear-se-ão na sua infinidade, e não em suas fraquezas, nas ignorâncias e nos caprichos de natureza humana.[7]

 

Ainda hoje teimamos em fazer Deus e Jesus à nossa imagem e semelhança, conferindo-lhes caracteres humanos e, portanto, falíveis, ao invés de implementarmos com pensamentos, palavras e atitudes, a aproximação com a grandeza espiritual de Jesus.

 O que nos salva é que Jesus jamais se cansará e, assim sendo, o determinismo, em a nossa estrada infinita, é o amor e o aperfeiçoamento.

 Eis, Kelsen, que Paulo de Tarso já prevenira que “a letra mata e o espírito vivifica”[8]. Portanto, é necessário transpor

a névoa das letras para encontrar a luz imperecível da lição.

 


[1] Juíza Federal da 1ª Vara da Seção Judiciária de Sergipe.

[2] KELSEN, Hans. O que é justiça?. São Paulo : Martins Fontes, 2001, p. 48. 

[3] Idem, p. 49.

[4] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro : Forense, 2007, 19ª edição, p. 111.

[5] Idem, ibidem.

[6] KELSENS, Hans, ob. cit., p. 49.

[7] MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis. São Paulo : Martins Claret, 2002, p. 199.

[8] Em II Coríntios, 3:6.

  

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