De Euclides Paes Mendonça
Vladimir Souza Carvalho
Pertenço a última geração que conheceu
Euclides Paes Mendonça. Tinha treze anos de
idade quando o seu assassinato ocorreu. Não
acredito que alguém, com idade inferior a minha,
tenha guardado na memória o rol de lembranças
que dele eu conservo. A não ser que se trate de
gente da família ou muito próxima, e, nesta
condição, tenha freqüentado a sua casa. Fora
disso, posso afirmar, sem medo de errar, que,
depois de mim, em termos cronológicos, a figura
de Euclides Paes Mendonça é apenas um nome que
alguns podem ter visto, mas a imensa maioria
apenas dele ouviu falar, sem guardar a menor
lembrança.
Menino atento aos movimentos de uma
Itabaiana ainda bem pequena, a figura de
Euclides Paes Mendonça habita minha memória em
várias cenas. Ora, dirige um veículo, vindo da
Rua das Flores e passando pela Rua do Sol. É um
sedan, antes, e depois, um fusca, que, à época,
a gente conhecia como Volks. Ora, o vejo em sua
residência, à Praça da Matriz, se balançando na
rede, cercado de puxa-sacos. Vou vê-lo, também,
no diretório da UDN, também na Praça da Matriz,
sobretudo nos dias anteriores a eleição de 1962.
Em outras imagens, vejo-o no balcão de seu
armazém, no Largo da Feira. Ou então comandando
as carreatas que os seus comícios provocavam.
Também no palanque, armado na Praça da Igreja,
assistindo ao desfile de 7 de Setembro e nos
comícios principais da UDN, o rosto graúdo, o
cabelo meio assanhado, o corpo pesado, o paletó
aberto. Ou, ainda, em algum banco da praça,
conversando com alguém. Ou, por fim, em cima de
um trator, comandando a derrubada da Rua do
Canto Escuro, as mãos distribuindo retratos
dentro de sua campanha a deputado federal. Só
nunca vi Euclides, em comício, discursando.
Mas, é, principalmente, nas fotos que a
imagem de Euclides Paes Mendonça mais se
alicerça, fotos que Romeu exibia nas vitrines de
seu atelier. As fotos de Euclides... As paredes
do diretório municipal da UDN se enchiam de
quadros com fotos suas, em plena atividade,
comandando caminhadas em favor da campanha
presidencial pró Jânio, de vassoura na mão,
pelas ruas de Itabaiana. Em outras, Euclides ao
lado de Luiz Garcia, de Leandro Maciel, de
Lourival Baptista, do próprio Jânio. Fotos,
ainda, no quadro de formatura dos concludentes
da 4a série no Ginásio Estadual de
Itabaiana, e outras e outras que a memória não
guardou, e, que, infelizmente, se perderam no
tempo, para pobreza de sua história, quando a
Filarmônica Nossa Senhora da Conceição passou a
ocupar a sede que tinha sido do diretório
municipal da UDN, já disse uma vez, repito
agora. Quem tirou os quadros das paredes e qual
o destino dado ao enorme acervo fotográfico?
Antonio Melo, que comandava a banda, nesse
tempo, já não pode responder. Os quadros, que
eu, na minha curiosidade, vi tantas e tantas
vezes, desapareceram, como se a morte de
Euclides tivesse decretado, igualmente, o óbito
de todo o material fotográfico que testemunhava
as suas atividades políticas.
Duas imagens, em especial, não me
saíram da memória, justamente em dois dias
essencialmente fatídicos na história de
Itabaiana.
A primeira ocorre em um sábado, pela manhã, no
Largo da Feira. O barulho de pessoas correndo me
chamou a atenção, eu que estava na loja de
papai. Em lugar de correr, também, fui a porta e
ainda subi num banco para melhor ver a cena.
Papai não teve a iniciativa de mandar que eu me
escondesse, nem tampouco posso afirmar se chegou
a me ver no banco apreciando as ocorrências, tal
a rapidez de tudo. De um lado, Euclides e alguns
soldados da Guarda Municipal, todos armados.
Euclides, com dois revólveres nas mãos, e os
soldados parados entre a loja de Antonio
Siqueira e a de Francisquinho Barbosa, no meio
da rua. De outro lado, vindo em sua direção,
Manoel Teles, seguro por um empregado, que lhe
pedia calma. Euclides, apontando os revólveres
para o ar, dizia: Olhe o que tenho pra você.
Manoel Teles respondia: Não tenho medo de arma
em sua mão. Não sei como a cena terminou. A
memória se perde em imagens desbotadas. Sei que
não ocorreu nenhuma briga física, nem nenhum
tiro foi disparado naquela manhã. Leite Neto e
Antonio Torres devem ter ido a Itabaiana,
imediatamente, encontrar uma saída diplomática.
Dia desta cena: 20 de abril de 1963.
A segunda vai ocorrer no fatídico 08 de agosto
de 1963, dividida em três atos, no período da
tarde. No primeiro, estou no ginásio,
escapulindo de uma aula para fumar (o ambiente,
naquele momento, não era de aula), escondido
depois da cerca (que não era de arame farpado),
sentado no chão, para não ser descoberto pelos
inspetores, Euclides, em uma kombi, se dirige ao
centro de Itabaiana, vindo de Aracaju. No
segundo, quando a passeata passa pela sua casa,
um veículo seu impedia a passagem do jipe da
Polícia. Há um pedido por parte do delegado.
Euclides retira o veículo. Os dois, delegado e
Euclides, trocam amabilidades. Não havia, para
os meus olhos de menino de treze anos, nada de
sombrio no céu. Depois, o ato final: a passeata
atinge a construção da sede do Banco do Brasil,
também na Praça da Igreja. Muita areia e pedra
no calçamento. Antonio de Oliveira Mendonça,
filho de Euclides, aparece com uma máquina para
fotografar a passeata, colocando-se bem perto do
jipe de propaganda. Há troca de desaforos entre
ele e o vereador pessedista Toinho do Bar. De
olho fixo nos dois, continuo caminhando, um
pouco do lado direito do jipe onde alguns
estudantes se portavam. De repente, vejo
Euclides no oitão da Prefeitura, de terno, outra
vez sem gravata. Por três vezes, dirige o mesmo
palavrão (Vá a merda) para a pessoa que discutia
com seu filho. Talvez tenha sido uma das últimas
pessoas a vê-lo vivo. Todos correm.
Instintivamente, corro, também, e, menos de um
minuto, da praça não tão distante, ouço os
primeiros disparos. Continuo correndo, na
tentativa de me manter longe dali, vencendo a
Rua do Cisco, que parecia se tornar longa,
depois, a Rua das Flores, em seguida, a Rua
Manoel Garangau, onde diminui o ritmo, em um
intrincado percurso, até, enfim, chegar a minha
casa.
Quarenta e cinco anos se passaram. A história,
do período e a de Euclides Paes Mendonça,
continua a desafiar o pesquisador. Alguma coisa
já se escreveu (consultar, a respeito, Ibarê
Dantas). Mas é pouco. Talvez ainda seja cedo,
porque os fatos conservam algum calor e as
camisas partidárias do pessedismo e do udenismo
não foram retiradas do corpo, completamente,
malgrado o tempo fruído. As feridas abertas, à
época, não estão totalmente cicatrizadas.
Afinal, a história exige isenção na exposição
dos fatos e no julgamento dos homens.
Publicado no Correio de Sergipe, edição do dia
16 de agosto de 2.008.