Artigo

As razões do outro

Por Telma Maria Santos[1]

 

Ano passado publiquei um artigo que se reportou aos equívocos e injustiças da nefasta prática do julgamento social, aquele em que nos arvoramos ser o juiz do comportamento de alguém sem que tenhamos conhecimento da real situação ou apresentemos uma consciência que nos faculte tal procedimento. No caso, temos dificuldade de nos projetar no universo do observado, pela individualidade de cada um, concretizada em sentimentos, ressentimentos, desejos, aversões, sonhos, desencantos, motivações e rancores muito próprios.

Quase nunca senhores da nossa realidade interna, já que possuímos recônditos inabitados dos quais fugimos consciente e inconscientemente, evidenciamos inúmeras limitações que nos impedem de perceber a realidade subjacente, principalmente a do outro. Esta constatação deveria nos estimular a uma prática que, embora tendente a diminuir este abismo, quase nunca é lembrada nos momentos mais conflituosos: ouvir. E ouvir aqui ganha uma acepção larga porque significa não somente ouvir o outro, mas procurar analisar, desapaixonadamente e sem projetar a própria sombra, os motivos do outro, para, somente a partir daí se pensar em corrigir erros que estejam afetando a convivência saudável e ética.  Missão difícil? Sem dúvida. Mas o que somos senão eternos aprendizes em busca do crescimento integral?

Na verdade, as inúmeras dificuldades que temos em procurar entender (atenção, não estou dizendo concordar) o outro tem origem em nossa superficial visão acerca de nós mesmos. Daí a eterna contemporaneidade da sabedoria agasalhada na frase de Sócrates que nos conclama ao autoconhecimento.

Pois bem. Trazendo o tema para o campo do julgamento técnico, procedido por um órgão constitucionalmente destinado para tal, e cujos detentores desta parcela de poder tenham todas as garantias para julgarem com a independência indispensável, tem-se uma série de regras direcionadas para garantir igualdade de condições às partes, especialmente no que se refere a poder contradizer o que contra si foi aventado. O Juiz, portanto, que deve se valer do que se avista nos autos, é um profissional que no seu mister se habitua a sempre “ouvir o outro lado”, antes de formar o seu juízo de valor definitivo. Mas isto não significa que nós Magistrados estamos isentos de esquecer a aplicação disso na vida social.

Semana passada, pude refletir mais amiúde sobre o tema deste artigo por conta de um processo que chegou às minhas mãos para decidir um pedido de liminar. Resumidamente, sem citar nomes, evidentemente, tratava-se de um pedido de um aluno adventista para que a faculdade por ele freqüentada lhe oferecesse opções para as aulas do dia do sábado, pois, segundo alegou, atender à proposição da instituição de ensino superior equivaleria a violar o 4º (quarto) Mandamento.

Tema polêmico, aliás, como todos os temas que se relacionam com religião, futebol e política, procurei teorizar o que, na minha visão, os defensores de cada corrente poderiam dizer de razoável para terem os argumentos aceitos e, assim, verem a tese defendida prevalecer.  Assim, parte da minha decisão teve o teor abaixo[2] subscrito, entre aspas.

“Por ser o Brasil um Estado laico[3], nenhuma religião pode exercer pressão ideológica junto aos cidadãos livres, nem imprimir sua marca ou papéis do Estado, porque não há verdadeira democracia sem liberdade religiosa, isto é, sem igualdade de os cidadãos professarem a fé que lhe repercute no seu âmago, justamente naquela porção transcendente que pode levar o ser humano a pairar além dos valores efêmeros, e se reconhecer como criatura eterna, originada da centelha divina.

Desnecessário também dizer que a liberdade religiosa há de estar em perfeita consonância com os princípios constitucionais, não se admitindo invocar tal liberdade para fins não agasalhados pela ordem constitucional.

No caso presente, é de se observar que a impetrante, no propósito firme de respeitar os dogmas da sua crença, não pretende eximir-se da obrigação de submeter-se às aulas, às avaliações ou de realizar as atividades propostas, mas tão-somente a realização de tais atividades em horário diferenciado, não compreendido no período do sábado bíblico.

Não há como não trazer à mente uma passagem da obra Filosofia do Direito: dos gregos ao pós-modernismo, de Wayne Morrison, professor de direito no Queen Mary and Westfield College e da Universidade de Londres, exatamente onde ele se reporta à “concepção Tomista do Estado”, a qual, não obstante reconheça a legitimidade do Estado, evidencia que este não pode obstaculizar o homem na busca da sua espiritualidade:

A partir da definição aristotélica do homem como animal social nascido para a sociedade política, Santo Tomás concorda que o Estado é uma instituição natural derivada da natureza humana, mas postula que o Estado também tem o dever que lhe é imposto no sentido de ajudar o homem a cumprir seu fim natural. (...).

Ao contrário de Santo Agostinho, Santo Tomás não vê o Estado como produto da pecaminosidade do homem (...).

Santo Tomás afirmava a legitimidade do Estado e sua autonomia em sua própria esfera, subordinando-o à Igreja apenas para assegurar que o fim espiritual último do homem fosse levado em consideração.[4]

A reflexão a se fazer, portanto, há de encarar a prevalência (ou não) de uma crença religiosa frente a uma obrigação aos demais imposta, à luz do ordenamento constitucional vigente.

Caixa de texto:  

 

Pois bem. Compreendo que muitos que não professam os mesmos dogmas defendidos pela impetrante têm inúmeros argumentos respeitáveis do ponto de vista argumentativo, filosófico e religioso, senão vejamos:

 

1. À afirmação da autora de que, por ser cristã e respeitar os 10 mandamentos, não se lhe poderia exigir o comparecimento desde o entardecer da sexta-feira até o pôr-do-sol do dia seguinte, outros cristãos protestantes, católicos, espíritas etc., poderiam contrapor o argumento de que também eles guardam os 10 mandamentos, na medida em que a guarda do sábado sofreu, ao longo do tempo, algumas interpretações, dando-se ênfase, evidentemente, àquelas que engrandecem a misericórdia de Deus.

Sob tal aspecto, é que os cristãos, inclusive os próprios adventistas buscam na própria vida e atitudes do Cristo, a melhor forma de entender tal mandamento. Das narrativas dos evangelistas, ater-nos-emos a duas, encartadas nos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, em que Jesus deixa muito evidente a forma de se dar cumprimento à guarda do sábado:

1.1. Uma passagem se refere ao episódio em que os discípulos, famintos, arrancam espigas de uma plantação para comer e os fariseus aproveitam tal atitude para criticar Jesus por não ter impedido o fato, ao que Ele responde:

Não lestes o que fez Davi e seus companheiros quando tiveram fome? Como entrou na casa de Deus e como eles comeram os pães da proposição, que não era lícito comer, nem a ele, nem aos que estavam com ele, mas exclusivamente aos sacerdotes? Ou não leste na Lei que com os seus deveres sabáticos os sacerdotes do Templo violam o sábado e ficam sem culpa? Digo-vos que aqui está algo maior do que o Templo. Se soubésseis o que significa: Misericórdia é que eu quero e não sacrifício, não condenaríeis os que não têm culpa. Pois o Filho do Homem é senhor do sábado.[5]

1.2. A outra narrativa citada refere-se à cura de um homem que tinha uma mão atrofiada e que Jesus curou em pleno sábado. Neste episódio, tentaram “testar” Jesus, para acusá-lo depois. Mateus assim descreve:

Caixa de texto:  

 

Partindo dali, entrou na sinagoga deles. Ora, ali estava um homem com a mão atrofiada. Então perguntaram-lhe, a fim de acusá-lo: “É lícito curar aos sábados?” Jesus respondeu: “Quem haverá dentre vós que, tendo uma só ovelha e caindo ela numa cova em dia de sábado, não vai apanhá-la e tirá-la dali? Ora, um homem vale muito mais do que uma ovelha! Logo é lícito fazer o bem aos sábados”. (...).[6]

 

Pois bem, tais registros evangélicos deixam evidentes que para o cristão é lícito fazer o bem em qualquer dia da semana. Neste aspecto, as palavras de Jesus se harmonizam perfeitamente com as suas lições e conduta de vida, já que foi enfático em dizer que devemos fazer aos outros o que desejamos que os outros nos façam, numa evidente chamada de consciência para ir além de não fazer o mal, passando, também, a fazer o bem. O apóstolo Paulo compreendeu como ninguém tal proposição quando, em I Coríntios, XIII, 1 a 13, um dos mais belos poemas de que a humanidade tem notícia, assim terminou o capítulo: “Agora, portanto, permanecem fé, esperança, caridade, essas três coisas. A maior delas, porém, é a caridade”.  Nenhuma dúvida, portanto, de que a caridade, no contexto cristão, é a fé em movimento, a fé que age na construção de um mundo melhor, afinal, conforme também narra Mateus (VII, 21), Jesus afirmou que “nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino dos Céus”. Com o que, nos moldes das propostas neotestamentárias, a melhor forma de adoração a Deus é colocando em prática a caridade material e moral.

1.2. Por sua vez, poderiam ainda argumentar os defensores da corrente contrária, partindo do pressuposto de inexistirem dúvidas de que a caridade, tanto a material quanto a moral, é elevada à condição de salvação na Doutrina Cristã, se estudar no dia da semana guardado pelos adventistas pode ou não situar-se no que Jesus classificou como “fazer o bem”, excepcionando, desta forma, a guarda do sábado.

A esta altura, não se pode fugir da indagação: estudar se enquadra em “fazer o bem”? Antes de ripostar tal questionamento, há de se refletir que os opositores ao direito pleiteado entendem que na concepção Cristã não existe relatividade para a finalidade do estudo: há de sempre ser direcionado para o bem da pessoa, para os que estão ao seu redor, enfim, para a comunidade, justamente pelo fato de ele preparar o cidadão para cumprir bem o seu papel social. Afinal, diriam, uma mente que se ilumina torna-se um ponto de irradiação de luz, trazendo benefícios para si e para os que interagem, de alguma forma, com a pessoa.

2. Mas os defensores da guarda do sábado também trazem argumentos de peso, os quais não podem ser desconsiderados. Apoiando-se na constatação de que a natureza humana ainda está sujeita a inúmeras vicissitudes, derivadas da condição de seres ainda imperfeitos, ganham relevo as ponderações no sentido de que o sábado deve ser reservado para reflexões que repercutam na cura espiritual; que o descanso equivaleria a não se deixar arrastar pela correnteza da ambição, da disputa de poder, da ansiedade de competição pelos primeiros lugares neste mundo transitório; que tal espaço de tempo não é dedicado à inanição, mas sim à convivência familiar dentro de uma atmosfera de estudos e reflexões que visam ao aperfeiçoamento espiritual, e, assim ocorrendo, há também um bem inestimável sendo construído e semeado. Para os que assim pensam, a caridade material e moral aí também se faria atuante.

Diante dos argumentos acima, haveria de se indagar, então, qual das visões oferece o bem mais desejável e se o escolhido poderia ser imposto ou ao requerente ou à sociedade e mesmo ao poder público. Tal pergunta, entretanto, não é a melhor a ser formulada, tampouco a resposta dela poderia nortear uma decisão judicial, haja vista a profundidade filosófica e o subjetivismo com que se reveste. 

Caixa de texto:  

 

A mais sensata indagação, portanto, é se cabe ao Estado, subordinado a uma ordem constitucional garantidora da preservação da dignidade da pessoa humana, e que positivou na sua Lei Suprema a inviolabilidade à liberdade de consciência e de crença, garantindo, ainda, que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa, a menos que a invoque para se furtar de obrigação legal imposta a todos e se recuse a cumprir prestação alternativa, impor ou permitir que um delegatário seu imponha à(o) impetrante o pensamento da corrente contrária à sua crença. Eis os preceptivos constitucionais delineadores de tal assunto:

 

Art. 5º (omissis).

Caixa de texto:  

 

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

 

(omissis)

VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de     convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.

 

Convém frisar que a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, contemplou, no artigo XVIII, esta regra de ouro indispensável para a convivência pacífica num mundo de inúmeras interpretações da vontade do Criador, interpretações, diga-se de passagem, nem sempre em harmonia com a grandeza da Divindade. Mas atentemos para a letra do artigo referido acima:

Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em público ou em particular.

 

Caixa de texto:  

 

A complexidade da questão reside exatamente no alcance a ser dado à referida liberdade. Mas tal complexidade está longe de ser dirimida pelos filósofos e jusfilósofos de todos os tempos. Ronald Dworkin traz-nos a seguinte contribuição sobre este tema eternamente palpitante:

 

Qualquer pessoa que adote a liberdade ou a igualdade como ideal normativo deve ter alguma opinião sobre os modos como as pessoas deveriam ser livres e os aspectos nos quais deveriam ser iguais ou tratadas como iguais, e cada pessoa terá uma opinião diferente. A liberdade e a igualdade, em outras palavras, são conceitos que admitem diversas interpretações ou concepções. Se achamos que a liberdade e a igualdade entram em conflito como ideais de penderá, indubitavelmente, de quais concepções de cada adotamos.[7]

 

Na história da humanidade, a conquista da liberdade de crença, foi marcada, em geral, por sangue de mártires incontáveis de todas as épocas. A consolidação paulatina também pede reafirmações diuturnas. Norberto Bobbio ao discorrer sobre outro direito que também se avultou entre guerras incontáveis, no caso, o político, situou bem a questão:

Os direitos do homem, apesar de terem sido considerados naturais desde o início, não foram dados de uma vez por todas. Basta pensar nas vicissitudes da extensão dos direitos políticos. Durante séculos não se considerou de forma alguma natural que as mulheres votassem. Agora, podemos também dizer que não foram dados todos de uma vez e nem conjuntamente. Todavia, não há dúvida de que as várias tradições estão se aproximando e formando juntas um único grande desenho da defesa do homem, que compreende os três bens supremos da vida, da liberdade e da segurança social.[8]

 

Aprisionando todos os argumentos vistos no dilema da autora, que se prontificou à exigida prestação alternativa, a mim, enquanto parcela do Poder Judiciário, não resta outra solução que se amolde aos princípios norteadores da liberdade e da dignidade da pessoa humana que não seja o reconhecimento da pertinência do seu pedido. (...).”

 

Confesso que após este exercício de retórica simples e despretensiosa, percebi mais profundamente que ouvir, mais do que um favor ou obrigação, é um aprendizado de vida e do mundo; é uma forma de se autoconhecer também, porque atentar para os desejos, motivações, angústias, esperanças e perspectivas do outro nos leva a refletir e identificar quais são os nossos verdadeiros desejos, valores, nossas metas, propensões e disposições.

Saber ouvir, portanto, é um reflexo do amadurecimento do ser e, ao mesmo tempo, direciona-o sempre para mais altos patamares de consciência evolutiva. As razões do outro podem ser, então, as razões que nos levam a desvestir o que ainda está oculto em nós.


 

[1] Juíza Federal da 1ª Vara da Seção Judiciária de Sergipe.

[2] Ressalvadas as correções de erros de digitação feitas neste artigo.

[3]Já que não possui religião oficial.

[4] MORRISON, Wayne. Filosofia do direito: dos gregos ao pós-modernismo; tradução Jefferson Luiz Camargo; revisão técnica Gildo Sá Leitão Rios. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 82/83.

 [5] Mateus, XII, 1 a 8. Bíblia de Jerusalém, São Paulo : Paulus, 2002, p. 1724.

[6] Mateus, XII, 9 a 14. Idem.

[7] DWORKIN, Ronald. A virtude soberana : a teoria e a prática da igualdade; tradução Cícero Araújo e Luiz Moreira. São Paulo : Martins Fontes, 2005, p. 166.

 [8] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos; tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro : Editora Campos, 2004, p. 229.

 

 JF/SE Home