As razões do outro
Por Telma Maria Santos
Ano passado publiquei um artigo que se reportou aos
equívocos e injustiças da nefasta prática do
julgamento social, aquele em que nos arvoramos ser o
juiz do comportamento de alguém sem que tenhamos
conhecimento da real situação ou apresentemos uma
consciência que nos faculte tal procedimento. No
caso, temos dificuldade de nos projetar no universo
do observado, pela individualidade de cada um,
concretizada em sentimentos, ressentimentos,
desejos, aversões, sonhos, desencantos, motivações e
rancores muito próprios.
Quase nunca senhores da nossa realidade interna, já
que possuímos recônditos inabitados dos quais
fugimos consciente e inconscientemente, evidenciamos
inúmeras limitações que nos impedem de perceber a
realidade subjacente, principalmente a do outro.
Esta constatação deveria nos estimular a uma prática
que, embora tendente a diminuir este abismo, quase
nunca é lembrada nos momentos mais conflituosos:
ouvir. E ouvir aqui ganha uma acepção larga porque
significa não somente ouvir o outro, mas procurar
analisar, desapaixonadamente e sem projetar a
própria sombra, os motivos do outro, para, somente a
partir daí se pensar em corrigir erros que estejam
afetando a convivência saudável e ética. Missão
difícil? Sem dúvida. Mas o que somos senão eternos
aprendizes em busca do crescimento integral?
Na verdade, as inúmeras dificuldades que temos em
procurar entender (atenção, não estou dizendo
concordar) o outro tem origem em nossa superficial
visão acerca de nós mesmos. Daí a eterna
contemporaneidade da sabedoria agasalhada na frase
de Sócrates que nos conclama ao autoconhecimento.
Pois bem. Trazendo o tema para o campo do julgamento
técnico, procedido por um órgão constitucionalmente
destinado para tal, e cujos detentores desta parcela
de poder tenham todas as garantias para julgarem com
a independência indispensável, tem-se uma série de
regras direcionadas para garantir igualdade de
condições às partes, especialmente no que se refere
a poder contradizer o que contra si foi aventado. O
Juiz, portanto, que deve se valer do que se avista
nos autos, é um profissional que no seu mister se
habitua a sempre “ouvir o outro lado”, antes de
formar o seu juízo de valor definitivo. Mas isto não
significa que nós Magistrados estamos isentos de
esquecer a aplicação disso na vida social.
Semana passada, pude refletir mais amiúde sobre o
tema deste artigo por conta de um processo que
chegou às minhas mãos para decidir um pedido de
liminar. Resumidamente, sem citar nomes,
evidentemente, tratava-se de um pedido de um aluno
adventista para que a faculdade por ele freqüentada
lhe oferecesse opções para as aulas do dia do
sábado, pois, segundo alegou, atender à proposição
da instituição de ensino superior equivaleria a
violar o 4º (quarto) Mandamento.
Tema polêmico, aliás, como todos os temas que se
relacionam com religião, futebol e política,
procurei teorizar o que, na minha visão, os
defensores de cada corrente poderiam dizer de
razoável para terem os argumentos aceitos e, assim,
verem a tese defendida prevalecer. Assim, parte da
minha decisão teve o teor abaixo
subscrito, entre aspas.
“Por ser o Brasil um Estado laico,
nenhuma religião pode exercer pressão ideológica
junto aos cidadãos livres, nem imprimir sua marca ou
papéis do Estado, porque não há verdadeira
democracia sem liberdade religiosa, isto é, sem
igualdade de os cidadãos professarem a fé que lhe
repercute no seu âmago, justamente naquela porção
transcendente que pode levar o ser humano a pairar
além dos valores efêmeros, e se reconhecer como
criatura eterna, originada da centelha divina.
Desnecessário também dizer que a liberdade religiosa
há de estar em perfeita consonância com os
princípios constitucionais, não se admitindo invocar
tal liberdade para fins não agasalhados pela ordem
constitucional.
No caso presente, é de se observar que a impetrante,
no propósito firme de respeitar os dogmas da sua
crença, não pretende eximir-se da obrigação de
submeter-se às aulas, às avaliações ou de realizar
as atividades propostas, mas tão-somente a
realização de tais atividades em horário
diferenciado, não compreendido no período do sábado
bíblico.
Não há como não trazer à mente uma passagem da obra
Filosofia do Direito: dos gregos ao pós-modernismo,
de Wayne Morrison, professor de direito no Queen
Mary and Westfield College e da Universidade de
Londres, exatamente onde ele se reporta à “concepção
Tomista do Estado”, a qual, não obstante reconheça a
legitimidade do Estado, evidencia que este não pode
obstaculizar o homem na busca da sua
espiritualidade:
A partir da definição aristotélica do homem como
animal social nascido para a sociedade política,
Santo Tomás concorda que o Estado é uma instituição
natural derivada da natureza humana, mas postula que
o Estado também tem o dever que lhe é imposto no
sentido de ajudar o homem a cumprir seu fim natural.
(...).
Ao contrário de Santo Agostinho, Santo Tomás não vê
o Estado como produto da pecaminosidade do homem
(...).
Santo Tomás afirmava a legitimidade do Estado e sua
autonomia em sua própria esfera, subordinando-o à
Igreja apenas para assegurar que o fim espiritual
último do homem fosse levado em consideração.
A reflexão a se fazer, portanto, há de encarar a
prevalência (ou não) de uma crença religiosa frente
a uma obrigação aos demais imposta, à luz do
ordenamento constitucional vigente.
Pois bem. Compreendo que muitos que não professam os
mesmos dogmas defendidos pela impetrante têm
inúmeros argumentos respeitáveis do ponto de vista
argumentativo, filosófico e religioso, senão
vejamos:
1. À afirmação da autora de que, por ser cristã e
respeitar os 10 mandamentos, não se lhe poderia
exigir o comparecimento desde o entardecer da
sexta-feira até o pôr-do-sol do dia seguinte, outros
cristãos protestantes, católicos, espíritas etc.,
poderiam contrapor o argumento de que também eles
guardam os 10 mandamentos, na medida em que a guarda
do sábado sofreu, ao longo do tempo, algumas
interpretações, dando-se ênfase, evidentemente,
àquelas que engrandecem a misericórdia de Deus.
Sob tal aspecto, é que os cristãos, inclusive os
próprios adventistas buscam na própria vida e
atitudes do Cristo, a melhor forma de entender tal
mandamento. Das narrativas dos evangelistas,
ater-nos-emos a duas, encartadas nos Evangelhos de
Mateus, Marcos e Lucas, em que Jesus deixa muito
evidente a forma de se dar cumprimento à guarda do
sábado:
1.1. Uma passagem se refere ao episódio em que os
discípulos, famintos, arrancam espigas de uma
plantação para comer e os fariseus aproveitam tal
atitude para criticar Jesus por não ter impedido o
fato, ao que Ele responde:
Não lestes o que fez Davi e seus companheiros quando
tiveram fome? Como entrou na casa de Deus e como
eles comeram os pães da proposição, que não
era lícito comer, nem a ele, nem aos que estavam com
ele, mas exclusivamente aos sacerdotes? Ou não leste
na Lei que com os seus deveres sabáticos os
sacerdotes do Templo violam o sábado e ficam sem
culpa? Digo-vos que aqui está algo maior do que o
Templo. Se soubésseis o que significa:
Misericórdia é que eu quero e não sacrifício,
não condenaríeis os que não têm culpa. Pois o Filho
do Homem é senhor do sábado.
1.2. A outra narrativa citada refere-se à cura de um
homem que tinha uma mão atrofiada e que Jesus curou
em pleno sábado. Neste episódio, tentaram “testar”
Jesus, para acusá-lo depois. Mateus assim descreve:
Partindo dali, entrou na sinagoga deles. Ora, ali
estava um homem com a mão atrofiada. Então
perguntaram-lhe, a fim de acusá-lo: “É lícito curar
aos sábados?” Jesus respondeu: “Quem haverá dentre
vós que, tendo uma só ovelha e caindo ela numa cova
em dia de sábado, não vai apanhá-la e tirá-la dali?
Ora, um homem vale muito mais do que uma ovelha!
Logo é lícito fazer o bem aos sábados”. (...).
Pois bem, tais registros evangélicos deixam
evidentes que para o cristão é lícito fazer o bem em
qualquer dia da semana. Neste aspecto, as palavras
de Jesus se harmonizam perfeitamente com as suas
lições e conduta de vida, já que foi enfático em
dizer que devemos fazer aos outros o que desejamos
que os outros nos façam, numa evidente chamada de
consciência para ir além de não fazer o mal,
passando, também, a fazer o bem. O apóstolo Paulo
compreendeu como ninguém tal proposição quando, em I
Coríntios, XIII, 1 a 13, um dos mais belos poemas de
que a humanidade tem notícia, assim terminou o
capítulo: “Agora, portanto, permanecem fé,
esperança, caridade, essas três coisas. A maior
delas, porém, é a caridade”. Nenhuma dúvida,
portanto, de que a caridade, no contexto cristão, é
a fé em movimento, a fé que age na construção de um
mundo melhor, afinal, conforme também narra Mateus
(VII, 21), Jesus afirmou que “nem todo aquele que me
diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino dos Céus”. Com
o que, nos moldes das propostas neotestamentárias, a
melhor forma de adoração a Deus é colocando em
prática a caridade material e moral.
1.2. Por sua vez, poderiam ainda argumentar os
defensores da corrente contrária, partindo do
pressuposto de inexistirem dúvidas de que a
caridade, tanto a material quanto a moral, é elevada
à condição de salvação na Doutrina Cristã, se
estudar no dia da semana guardado pelos adventistas
pode ou não situar-se no que Jesus classificou como
“fazer o bem”, excepcionando, desta forma, a guarda
do sábado.
A esta altura, não se pode fugir da indagação:
estudar se enquadra em “fazer o bem”? Antes de
ripostar tal questionamento, há de se refletir que
os opositores ao direito pleiteado entendem que na
concepção Cristã não existe relatividade para a
finalidade do estudo: há de sempre ser direcionado
para o bem da pessoa, para os que estão ao seu
redor, enfim, para a comunidade, justamente pelo
fato de ele preparar o cidadão para cumprir bem o
seu papel social. Afinal, diriam, uma mente que se
ilumina torna-se um ponto de irradiação de luz,
trazendo benefícios para si e para os que interagem,
de alguma forma, com a pessoa.
2. Mas os defensores da guarda do sábado também
trazem argumentos de peso, os quais não podem ser
desconsiderados. Apoiando-se na constatação de que a
natureza humana ainda está sujeita a inúmeras
vicissitudes, derivadas da condição de seres ainda
imperfeitos, ganham relevo as ponderações no sentido
de que o sábado deve ser reservado para reflexões
que repercutam na cura espiritual; que o descanso
equivaleria a não se deixar arrastar pela correnteza
da ambição, da disputa de poder, da ansiedade de
competição pelos primeiros lugares neste mundo
transitório; que tal espaço de tempo não é dedicado
à inanição, mas sim à convivência familiar dentro de
uma atmosfera de estudos e reflexões que visam ao
aperfeiçoamento espiritual, e, assim ocorrendo, há
também um bem inestimável sendo construído e
semeado. Para os que assim pensam, a caridade
material e moral aí também se faria atuante.
Diante dos argumentos acima, haveria de se indagar,
então, qual das visões oferece o bem mais desejável
e se o escolhido poderia ser imposto ou ao
requerente ou à sociedade e mesmo ao poder público.
Tal pergunta, entretanto, não é a melhor a ser
formulada, tampouco a resposta dela poderia nortear
uma decisão judicial, haja vista a profundidade
filosófica e o subjetivismo com que se reveste.
A mais sensata indagação, portanto, é se cabe ao
Estado, subordinado a uma ordem constitucional
garantidora da preservação da dignidade da pessoa
humana, e que positivou na sua Lei Suprema a
inviolabilidade à liberdade de consciência e de
crença, garantindo, ainda, que ninguém será privado
de direitos por motivo de crença religiosa, a menos
que a invoque para se furtar de obrigação legal
imposta a todos e se recuse a cumprir prestação
alternativa, impor ou permitir que um delegatário
seu imponha à(o) impetrante o pensamento da corrente
contrária à sua crença. Eis os preceptivos
constitucionais delineadores de tal assunto:
Art. 5º (omissis).
VI - é inviolável a
liberdade de consciência e de crença, sendo
assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e
garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de
culto e a suas liturgias;
(omissis)
VIII - ninguém será
privado de direitos por motivo de crença religiosa
ou de convicção filosófica ou política, salvo se
as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos
imposta e recusar-se a cumprir prestação
alternativa, fixada em lei.
Convém frisar que a Declaração Universal dos
Direitos do Homem e do Cidadão, contemplou, no
artigo XVIII, esta regra de ouro indispensável para
a convivência pacífica num mundo de inúmeras
interpretações da vontade do Criador,
interpretações, diga-se de passagem, nem sempre em
harmonia com a grandeza da Divindade. Mas atentemos
para a letra do artigo referido acima:
Todo ser humano tem
direito à liberdade de pensamento, consciência e
religião; este direito inclui a liberdade de mudar
de religião ou crença e a liberdade de manifestar
essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática,
pelo culto e pela observância, em público ou em
particular.
A complexidade da questão reside exatamente no
alcance a ser dado à referida liberdade. Mas tal
complexidade está longe de ser dirimida pelos
filósofos e jusfilósofos de todos os tempos. Ronald
Dworkin traz-nos a seguinte contribuição sobre este
tema eternamente palpitante:
Qualquer pessoa que
adote a liberdade ou a igualdade como ideal
normativo deve ter alguma opinião sobre os modos
como as pessoas deveriam ser livres e os aspectos
nos quais deveriam ser iguais ou tratadas como
iguais, e cada pessoa terá uma opinião diferente. A
liberdade e a igualdade, em outras palavras, são
conceitos que admitem diversas interpretações ou
concepções. Se achamos que a liberdade e a igualdade
entram em conflito como ideais de penderá,
indubitavelmente, de quais concepções de cada
adotamos.[7]
Na história da humanidade, a conquista da liberdade
de crença, foi marcada, em geral, por sangue de
mártires incontáveis de todas as épocas. A
consolidação paulatina também pede reafirmações
diuturnas. Norberto Bobbio ao discorrer sobre outro
direito que também se avultou entre guerras
incontáveis, no caso, o político, situou bem a
questão:
Os direitos do
homem, apesar de terem sido considerados naturais
desde o início, não foram dados de uma vez por
todas. Basta pensar nas vicissitudes da extensão dos
direitos políticos. Durante séculos não se
considerou de forma alguma natural que as mulheres
votassem. Agora, podemos também dizer que não foram
dados todos de uma vez e nem conjuntamente. Todavia,
não há dúvida de que as várias tradições estão se
aproximando e formando juntas um único grande
desenho da defesa do homem, que compreende os três
bens supremos da vida, da liberdade e da segurança
social.[8]
Aprisionando todos os argumentos vistos no dilema da
autora, que se prontificou à exigida prestação
alternativa, a mim, enquanto parcela do Poder
Judiciário, não resta outra solução que se amolde
aos princípios norteadores da liberdade e da
dignidade da pessoa humana que não seja o
reconhecimento da pertinência do seu pedido. (...).”
Confesso que após este exercício de retórica simples
e despretensiosa, percebi mais profundamente que
ouvir, mais do que um favor ou obrigação, é um
aprendizado de vida e do mundo; é uma forma de se
autoconhecer também, porque atentar para os desejos,
motivações, angústias, esperanças e perspectivas do
outro nos leva a refletir e identificar quais são os
nossos verdadeiros desejos, valores, nossas metas,
propensões e disposições.
Saber ouvir, portanto, é um reflexo do
amadurecimento do ser e, ao mesmo tempo, direciona-o
sempre para mais altos patamares de consciência
evolutiva. As razões do outro podem ser, então, as
razões que nos levam a desvestir o que ainda está
oculto em nós.
Já
que não possui religião oficial.